sábado, 12 de março de 2022

Os filmes do Oscar: TICK, TICK... BOOM! – 2 indicações

Por Ricky Nobre

Jonathan Larson foi um meteoro que passou pelo teatro musical norte americano e o mudou para sempre. Autor do musical Rent, seu primeiro e único grande espetáculo a ser encenado e que ficou 12 anos em cartaz na Broadway e mudou a forma de se perceber e fazer musicais, Larson teve uma morte trágica e precoce, vítima de um aneurisma causado por uma síndrome rara, que o levou um dia antes da estreia. Larson não chegou a ver seu sucesso e o impacto que causou. Depois de passar oito anos compondo o musical Superbia, que acabou não conseguindo patrocínio, Larson criou o pequeno tick, tick... BOOM!, um show intimista onde o próprio contava e cantava sua luta para se tornar um grande artista, suas dúvidas, decepções e o medo do tempo passando e a proximidade dos 30 anos de idade (como uma bomba relógio, tick, tick...). A adaptação deste pequenino espetáculo para a tela, transformando-o em uma biografia musical de um autor de musicais foi o desafio de Lin-Manuel Miranda, premiado autor e diretor da Broadway, em sua estreia no cinema.

 

O roteirista Steven Levenson é bastante hábil ao construir uma narrativa biográfica costurada, entranhada no pequeno show de Larson. O verso e a prosa dele no palco completam e rimam com a encenação de sua luta diária trabalhando em restaurante, desenvolvendo seu espetáculo e tentando não erodir suas relações, seja com os amigos, seja com a namorada. A primeira meia hora é particularmente delicada e alguns podem ter dificuldade de sobreviver a ela. A proposta não fica muito clara para o espectador e a montagem picotada, especialmente na parte dramatizada, não é gentil com as interpretações, que parecem forçadas. Com o tempo, não só a mecânica de funcionamento do filme fica mais clara, mas o próprio filme passa a se entender melhor, e ele finalmente deslancha e só vai ficando cada vez melhor.

 

Andrew Garfield tem aqui seu melhor trabalho na carreira e é o principal responsável por manter o público sempre torcendo por ele, mesmo quando ele não é exatamente o melhor dos amigos ou o melhor dos namorados. Os demais personagens, especialmente o amigo Michael e a namorada Susan, são bem escritos, com estrutura e força próprias, provavelmente fruto das entrevistas com amigos e profissionais que conheceram Larson que o roteirista fez para desenvolver a parte biográfica do roteiro. Essa qualidade dos coadjuvantes só enriquece a história de Larson e enfatiza o impacto deles na sua vida e no seu trabalho. 

 

O filme tem uma produção bem simples, sem grandes arroubos de mega musical, mantendo bastante o espírito off-off-broadway do espetáculo original. O efeito “viagem no tempo” e a imersão do espectador na época da narrativa (o comecinho dos anos 90) é muito boa e é inevitável a presença da ameaça da AIDS, grande fantasma daquela geração, numa época em que a doença era quase sempre letal.

Para os fãs de musicais em geral e para os de Rent em particular, tick, tick...BOOM! é um filme recomendadíssimo. Para o restante do público, depende do quanto conseguir se conectar com a proposta narrativa, principalmente na primeira meia hora, que de fato não é a parte mais bem resolvida do filme. No mais, tem a excelente performance de Garfield e é uma jornada emocionante, alegre, mas também melancólica, pois sabemos que a luta tão obstinada de Larson será bruscamente interrompida. 

COTAÇÃO:

 

INDICAÇÕES AO OSCAR:

Ator: Andrew Garfield

Montagem: Myron Kerstein e Andrew Weisblum

 

tick, tick… BOOM! (EUA – 2021)

Com: Andrew Garfield, Alexandra Shipp, Robin de Jesus, Vanessa Hudgens, MJ Rodriguez e Judith Light

Direção: Lin-Manuel Miranda

Roteiro: Steven Levenson, baseado no musical de Jonathan Larson

Fotografia: Alice Brooks

Montagem: Myron Kerstein e Andrew Weisblum

Design de produção: Alex DiGerlando

sexta-feira, 11 de março de 2022

Os filmes do Oscar: A FAMÍLIA MITCHELL E A REVOLTA DAS MÁQUINAS – 1 indicação

Por Ricky Nobre

A Sony Animation vem se desenvolvendo desde 2006 com longas e franquias de razoável sucesso, como O Bicho Vai Pegar e Hotel Transilvânia, com alguns tropeços lamentáveis como Emoji: O Filme. Porém, após o maravilhoso e oscarizado Homem Aranha no Aranhaverso tornar-se um clássico instantâneo, o estúdio mostrou-se mais aberto a ousadias. O mais recente resultado dessa fase é A Família Mitchell e A Revolta das Máquinas, um filme histérico, reflexivo, hilário, terno, abestado, mordaz e genial.

A jovem Abbi é uma apaixonada por cinema que faz seus próprios curtas em seu canal no Youtube. Prestes a se mudar para ingressar na faculdade de cinema, acaba fazendo a viagem de carro com sua família problemática (“a pior família do mundo”). No caminho, são surpreendidos por uma insurreição de inteligências artificiais comandadas por Pal (uma versão da Alexa) como vingança por ter sido rebaixada à obsolescência. Cabe aos Mitchells a hercúlea tarefa de salvar o mundo, ao mesmo tempo em que lutam para realizar as tarefas e as conexões emocionais mais simples. 

 

Os Mitchells é um triunfo artístico e técnico. A paixão de Abby por cinema e arte é o ponto de partida de toda a concepção estética do filme, que tem constantes intervenções em animação 2D e cartunesca onde até memes de internet se intrometem na narrativa. A própria animação dos personagens carrega uma leve camada de 2D, principalmente nos rostos, como um filtro, que dá uma expressividade diferente e específica, que ecoa uma animação mais livre e tradicional, ao mesmo tempo em que as já mencionadas intervenções constroem uma linguagem própria e a conecta com o dia a dia do público mais jovem, sendo, talvez, um dos longas de animação mais radicalmente conectados com seu tempo já produzidos. 

 

O tema da revolta das máquinas não é explorado a fundo, mas o roteiro dá conta de umas boas pinceladas no assunto (só a fala “roubar os dados dos usuários para alimentar uma inteligência artificial talvez não tenha sido uma boa ideia” já vale o filme). Uma excelente decisão foi não demonizar a tecnologia, apesar das diversas críticas à indústria e aos usuários. Da forma como o tema se desenvolve, tecnologia é ao mesmo tempo a guilhotina e a tábua de salvação dos personagens, e até o personagem mais resistente à modernidade terá que enfrentar sua aversão a ela.

 

O foco, na verdade, é a relação familiar, mais especificamente entre pai e filha. Abby não se sente acolhida nem compreendida, como se sua arte não significasse nada, enquanto o pai teme que a filha sofra com as mesmas decepções que ele sofreu na juventude. O filme dá margem para os personagens fazerem e dizerem coisas bastante questionáveis, ao mesmo tempo que mostra seu empenho em continuarem juntos e vencerem os obstáculos. São personagens, acima de tudo, profundamente humanizados, e o filme mantém momentos muito ternos, sem diminuir o tom inteligente e a intensidade alucinada da comédia. Muito interessante a decisão de dar ao menino Aaron alguns possíveis traços de autismo e Abby ser LGBTQ+. Questionável em todo filme foi apenas a decisão do diretor Michael Rianda em ele mesmo dublar Aaron. Criança com voz de adulto já foi feito antes, mas aqui não tem motivo e fica muito estranho.

 

Os diretores Michael Rianda e Jeff Rowe, em suas estreias em longa-metragem, realizam uma animação emocionante, com um enorme fator de risco com o tom e o estilo do humor e da linguagem. Era para ser lançada nos cinemas em fins de 2020, mas a pandemia fez a Sony decidir vender para a Netflix, que lançou em abril de 2021. Mesmo assim, foi um imenso sucesso e uma continuação já está prevista. Disparada, a melhor animação do ano.

COTAÇÃO:


 

INDICAÇÃO AO OSCAR:

Melhor longa de animação

 

A FAMÍLIA MITCHELL E A REVOLTA DAS MÁQUINAS (The Mitchells vs The Machines, EUA – 2021)

Com: Abbi Jacobson, Danny McBride, Maya Rudolph, Michael Rianda, Eric André e Olivia Colman

Direção e roteiro: Michael Rianda e Jeff Rowe

Diretor de animação: Federico Abib

Montagem: Greg Levitan

Design de produção: Lindsey Olivares

Música: Mark Mothersbaugh      

quarta-feira, 9 de março de 2022

Os filmes do Oscar: BELFAST – 7 indicações

Por Ricky Nobre

Quando Kenneth Branagh estreou na direção com Henrique V (1989), filme que também protagonizava, foi recebido com grande entusiasmo pela enorme qualidade de sua adaptação de Shakespeare. Numa sequência de ótimos pequenos projetos como Voltar a Morrer e Para o Resto de Nossas Vidas, tornou-se um grande nome nos anos 90, enquanto parecia que iria adaptar cada peça já escrita por Shakespeare. Longe disso, na verdade, mas chegou a realizar o feito até hoje inédito de levar para o cinema o texto completo de Hamlet no excelente filme de 1996. Com o tempo, Branagh foi se “hollywoodizando”, aceitando convites que iam de Thor a Cinderella, indo até Jack Ryan. Belfast chega como seu projeto mais pessoal.

 

Em 1969, o pequeno Buddy, de 9 anos, vive os “Troubles”, como é conhecido o período de conflitos violentos entre católicos e protestantes na Irlanda. Ele observa tudo sob sua ótica infantil, enquanto sua família precisa decidir se sai ou não do país em busca de segurança e estabilidade. Logo de cara já se percebe que se trata de um filme autobiográfico, e que Buddy é o diretor Branagh. Belfast é construído a partir de suas memórias de infância, que incluem não apenas os conflitos e a violência, mas também as amizades, a união familiar, a paixãozinha da escola, a ausência paterna devido ao trabalho e o início do amor pelo cinema. 

 

Belfast tinha tudo para ser a pequena obra prima de Branagh, mas infelizmente não é o caso. Por mais que se tenha falado do quanto que este filme é “oscar bait” (isca de Oscar), isso não seria problema algum caso a “isca” fosse tudo isso que se esperava. Esteticamente, é um belo trabalho, quase todo em preto e branco, com belíssima fotografia contrastada, surpreendente para um trabalho rodado em digital (por questão de custos, uma vez que Branagh sempre prefere rodar em película). O grande trunfo do filme é o pequeno Jude Hill, uma inesgotável fonte de carisma que conquista o público desde a primeira cena. Não só ele, mas todo o excelente elenco tenta carregar o filme nas costas, mas não há tanto assim para carregar.

 

Talvez na tentativa de realizar uma obra leve, sempre filtrada pelo olhar infantil, Branagh trouxe um roteiro magro, onde vemos uma excessiva despolitização dos conflitos e praticamente nenhuma contextualização para quem já não tenha um bom conhecimento histórico do período. Apesar de algumas cenas com notícias de TV e rádio, com pronunciamentos oficiais do governo britânico, o conflito ganha contornos quase de uma guerra de gangues de bairro, e não uma guerra de três décadas com tantas vidas perdidas, mesmo levando em conta que o olhar de Buddy se restringe ao seu pequeno mundo, que vai de casa à escola.

 

Existem excelentes exemplos da guerra sob o ponto de vista infantil, desde a aventura épica e dramática de O Império do Sol de Spielberg, passando pela experiência familiar e intimista de Esperança e Glória de Boorman, chegando à sátira ousada de Jo Jo Rabbit de Waititi. Branagh escolhe um caminho semelhante ao de Boorman, mas não passa de uma simpática coleção de memórias. Falta coesão, força e um pouco de coragem. É um filme “limpo” e “seguro”. Depois da excelente sequência inicial de conflito (onde o filme se mostra muito mais promissor), tudo o mais parece não oferecer nenhum perigo real que construísse um contraste mais vigoroso com as cenas mais engraçadas e ternas. 

 

Belfast não é um filme de fato ruim. Só o elenco já vale a experiência e tem alguns ótimos momentos (“it’s biological” é uma fala que vai demorar muito pra sair da sua cabeça). Mas é muito potencial para pouco resultado, além de permanecer sob a vasta sombra de predecessores muito mais bem-sucedidos. Suas sete indicações ao Oscar são um grande triunfo do marketing da distribuidora junto aos membros da Academia. Vale assistir sem expectativa. Mas, provavelmente, ficará na memória por muito tempo.

 COTAÇÃO: 



INDICAÇÕES AO OSCAR

Melhor filme

Diretor: Kenneth Branagh

Ator coadjuvate: Ciarán Hinds

Atriz coadjuvante: Judy Dench

Roteiro original: Kenneth Branagh

Canção original: "Down to Joy" por Van Morrison

Som: Denise Yarde, Simon Chase, James Mather e Niv Adiri

 

BELFAST (Reino Unido – 2021)

Com:  Jude Hill, Lewis McAskie, Caitriona Balfe, Jamie Dornan, Judi Dench, Ciarán Hinds, Josie Walker e Lara McDonnell

Direção e roteiro: Kenneth Branagh

Fotografia: Haris Zambarloukos

Montagem: Úna Ní Dhonghaíle

Música: Van Morrison

Design de produção: Jim Clay

domingo, 6 de março de 2022

Os filmes do Oscar: MÃES PARALELAS – 2 indicações

Por Ricky Nobre

O universo feminino é o tema principal da filmografia de Almodóvar. Obviamente, não o único, porém o mais recorrente. A maternidade em específico já nos deu dois dos melhores filmes do cineasta: Tudo Sobre Minha Mãe e o recente Dor e Glória. Mães Paralelas chega com a difícil tarefa de suceder este último, uma de suas mais belas e sensíveis obras. A maternidade, no entanto, vem acompanhada de um segundo tema, que é a dor coletiva da nação espanhola frente ao massacre ocorrido durante a ditadura franquista, mais especificamente, a dor das famílias dos desaparecidos. 

 

O tema dos desaparecidos é introduzido logo nas primeiras cenas, onde a fotógrafa Janis (Penélope Cruz, excelente) procura o antropólogo forense Arturo para ver a possibilidade da escavação da vala onde seu avô foi enterrado ainda nos primeiros dias da guerra. Os dois se envolvem e ela fica grávida, e acaba decidindo criar a criança sozinha. Na maternidade conhece a adolescente Ana (Milena Smit), também mãe solteira e que criará a criança quase sem a ajuda da mãe, uma atriz que, depois de muitos anos de tentativas, finalmente conseguiu avançar na carreira. A relação entre Janis e Ana se estenderá para além da convivência no hospital e se desenvolverá um laço estreito e inesperado.

 

Ao longo do filme, exceto por uma citação ou outra, o tema dos desaparecidos é abandonado e a trama das duas mães domina a narrativa. Bem ao seu gosto e talento, Almodóvar investe no melodrama com sua mão mágica, que acentua o espetáculo do sofrimento e da angústia, sem perder o domínio do potencial de cafonice da abordagem. Na década de 80, a crítica cinematográfica se lambuzava com o conceito de kitsch (um jeito chique de ser cafona) para definir o cinema almodovariano e, apesar das pinceladas bem mais sutis do que as de 35 ou 40 anos atrás, o diretor mantém essa estética e esse domínio. O mais importante é que ele, consciente da corda bamba do ridículo na qual anda o melodrama, sempre se equilibra e sustenta o drama e a emoção genuína e contagiante. Nisso contribui a música do parceiro de longa data, Alberto Iglesias, ainda que, em alguns poucos momentos, ela assuma leves contornos hitchcockianos que, pontualmente, parecem deslocados na narrativa.

 

O grande problema de Mães Paralelas é que, após uma dramática reviravolta, o tema das mães é abandonado, sendo substituído pelos desaparecidos. As últimas cenas apenas pincelam a resolução do drama principal do filme, onde tudo parece ter sido resolvido longe da câmera. Além de tomar apenas um pequeno espaço do filme, o tema dos desaparecidos não é desenvolvido satisfatoriamente. São apenas pinceladas grossas, ainda que firmes, que apenas rascunham esse aspecto do roteiro. E então, o filme acaba...

 

Da forma como se apresenta, Mães Paralelas parece dois filmes incompletos em vez de um que entrelace dois temas aparentemente díspares. Ainda assim, Almodóvar sugere com perspicácia os pontos de conexão entre os dois temas, como a dor de separações súbitas e não resolvidas. O roteiro merecia muito um trabalho mais profundo que entrelaçasse os temas, em vez de trata-los em blocos, unidos de forma bruta. Ainda assim, as duas histórias conseguem deixar marcada uma mensagem em comum: ainda que doa, a verdade acaba vencendo.

COTAÇÃO: 


 

INDICAÇÕES AO OSCAR:

Atriz: Penelope Cruz

Música: Alberto Iglesias

 

MÃES PARALELAS (Madres Paralelas, Espanha/França – 2021)

Com: Penélope Cruz, Milena Smit, Israel Elejalde, Aitana Sánchez-Gijón e Rossy de Palma

Direção e roteiro: Pedro Almodóvar

Fotografia: José Luis Alcaine      

Montagem: Teresa Font

Música: Alberto Iglesias               

Design de produção: Antxón Gómez

 


sábado, 5 de março de 2022

Os filmes do Oscar: OS OLHOS DE TAMMY FAYE – 2 indicações

Por Ricky Nobre

Escândalos envolvendo políticos e religiosos costumam ter um forte impacto popular e midiático, provavelmente pela percepção da hipocrisia de manter um discurso que é avesso à prática. Não é fácil para o cinema, em um assunto como esse, esquivar-se de clichês e maniqueísmos, e o clássico Entre Deus e o Pecado (1960) de Richard Brooks seja talvez o melhor exemplo de complexidade ao tratar do tema. Os Olhos de Tammy Faye tenta de alguma forma seguir por esse caminho, mas apenas para a personagem Tammy. Ela e seu marido Jim Bakker foram a grande sensação do tele evangelismo nos anos 70 e 80, até que um grande escândalo de desvio de verbas (além de outros de cunho sexual) pusesse fim ao seu império. Tammy Faye, por sua personalidade e visual excêntricos, foi motivo de piada por muito anos, principalmente após o escândalo, e o filme se esforça ao máximo para jogar uma luz diferente sobre sua vida e sua história.

 

O diretor Michael Showalter (de Doentes de Amor) se arrisca ao estruturar seu filme como uma comédia (com tons dramáticos), levando em conta que é justamente o humor às custas da imagem pública de Tammy Faye que ele procura rejeitar e rever. O tom humorístico que permeia o filme procura dar leveza e uma certa credibilidade a um assunto que muitos do público consideram ridículo e até mesmo desonesto por definição. Tammy é mostrada como uma jovem verdadeiramente engajada com a evangelização desde que percorria a estrada com Bakker de cidade em cidade, enquanto, nesse mesmo período, este já era retratado com alguém que não era confiável para tratar de dinheiro. 

 

Tammy é retratada com duas características principais. A primeira é um real amor pela evangelização e pelas pessoas. Em diversos momentos do filme ocorrem choques entre autoridades religiosas e a postura de Tammy em relação a sexo, inclusão da população LGBT na igreja, sinceridade sobre a AIDS em plenos anos 80 e a noção de que a igreja é para todos. A segunda é uma ingenuidade quase infantil sempre que a questão financeira era abordada. No filme, Tammy parece não ver nada de errado no fato do casal estar nadando em dinheiro e luxo enquanto projetos financiados pelo público que doa diariamente por telefone permanecem sistematicamente atrasados. E essa ingenuidade parece capaz de isentá-la de qualquer responsabilidade sobre o ocorrido. 

 

O filme não se aprofunda em nada no que se refere aos escândalos financeiros, sexuais ou ao papel do tele evangelismo na política, principalmente na eleição de Reagan. Quem quiser algo mais aprofundado deve procurar o documentário homônimo realizado em 2000, no qual este filme se baseia. Mas o roteiro não deixa o espectador completamente deslocado nesses assuntos e dá dicas mínimas, porém precisas, espalhadas pelo filme. O foco é na personalidade esfuziante e luminosa de Tammy. E se isso é o suficiente para criar um filme charmoso, e até mesmo fascinante em alguns momentos, é graças ao monumento é que o trabalho de Jessica Chastain (que também produz o filme). Não apenas a maquiagem que a torna irreconhecível, mas a total imersão da atriz em sua personagem, que carrega o filme não só nas costas, mas na cabeça, no colo, na ponta dos dedos. Ela até mesmo canta todas as músicas do filme.

 

O filme é tão da personagem quanto é da atriz e o trabalho é de um nível tão excepcional que é capaz de suprir o vácuo deixado por todos os outros aspectos do caso que não são explorados e de todos os demais personagens que não são aprofundados. De certa forma, os demais religiosos do filme caem nos clichês dos quais Tammy é protegida pelo roteiro e direção. Por vezes, Tammy parece um oásis de luz e sinceridade, cercada de aparências de decência e hipocrisia cristã por todos os lados. Enquanto era cercada de mentiras e traição, Tammy era cobrada e julgada por ser real. E ela permaneceu real no seu mundo imaginário até o fim.

 

COTAÇÃO: 

 

INDICAÇÕES AO OSCAR:

Atriz: Jessica Chastain

Maquiagem e cabelo: Linda Dowds, Stephanie Ingram e Justin Raleigh

 

OS OLHOS DE TAMMY FAYE (The Eyes of Tammy Faye, EUA – 2021)

Com: Jessica Chastain, Andrew Garfield, Cherry Jones, Vincent D'Onofrio, Mark Wystrach e Sam Jaeger

Direção: Michael Showalter

Roteiro: Abe Sylvia

Fotografia: Mike Gioulakis

Montagem: Mary Jo Markey e Andrew Weisblum

Música: Theodore Shapiro

Design de produção: Laura Fox

sexta-feira, 4 de março de 2022

Os filmes do Oscar: RAYA E O ÚLTIMO DRAGÃO – 1 indicação

Por Ricky Nobre

O público de hoje problematiza facilmente (com certa razão), a personagem Ariel de A Pequena Sereia (1988), onde ela desiste de sua própria voz por um príncipe que mal conhece. Mas quem inserir o filme no contexto em que foi lançado, ou ter idade para ter visto em sua estreia nos cinemas, pode lembrar do impacto que foi ver, pela primeira vez, a princesa salvando a vida do príncipe. Pode não parecer nada hoje, mas na época foi um passo gigante. No filme seguinte, A Bela e a Fera, a heroína era culta, valorizava a leitura e era avessa à pequenez da mentalidade provinciana e aos avanços de Gaston, o maior “heterotop” da animação. Tá bom que o filme romantizava completamente uma relação extremamente abusiva, mas a Disney só dá um passinho de cada vez mesmo. Às vezes dois pra frente e um pra trás. E de passinho em passinho, se passam 35 anos, e chegamos a Raya.

O mais interessante de perceber nos indicados a melhor longa-metragem de animação deste ano são os três lançados pelo gigante conglomerado Disney, dois da Disney Animation (Raya e Encanto) e um da Pixar (Luca). Por mais radicalmente diferentes que esses três filmes pareçam (ou sejam) entre si, eles guardam um denominador comum: o efeito que os filmes do Studio Ghibli, particularmente os de Hayao Miyazaki, tiveram sobre seus criadores. O sucesso que cada um teve em usar algumas características desses filmes é variável, mas está claramente lá. E dos três pode-se dizer que Raya foi o mais bem-sucedido. 

No Reino de Kumandra, os mágicos dragões se sacrificaram para salvar a humanidade dos terríveis Drunn, e tudo que sobrou de sua magia foi guardada numa esfera luminosa. A cobiça da humanidade pelo poder da esfera dividiu Kumandra em cinco nações inimigas e, após 500 anos, um ataque termina com a quebra da esfera em cinco partes e a volta dos temidos Drunn. Cabe à jovem Raya, filha do líder que protegia a esfera, procurar o último dragão e tentar restaurar o artefato a partir de seus fragmentos e restaurar Kumandra, quase totalmente devastada.

Raya segue o caminho já iniciado em Moana (pois é, passinhos...) ao tomar para si a tarefa de salvar sua terra, com o agravante de carregar na consciência parte da responsabilidade pelo ocorrido. Tendo sido treinada como guerreira, ela vaga por pelo cenário pós apocalíptico por seis anos numa busca desesperada por uma solução. Em mais um passo adiante para o estúdio do rato, Raya é a primeira princesa Disney que não canta, e essa ausência de números musicais é um dos vários elementos que contribuem para um perfil um pouco menos infantil e mais juvenil do filme. A forma como o mundo de Kumandra e seus posteriores reinos, sua política e cultura, o cenário desolador pós quebra da esfera, tudo isso constrói uma ambientação que remete facilmente a filmes de Miyazaki como Nausicaä e Princesa Mononoke, assim como a própria figura de Raya lembra as heroínas não apenas do Studio Ghibli mas vários outros animes.

Todo o visual do filme é deslumbrante, seja pela cuidadosa pesquisa da cultura do sudeste asiático que inspirou Kumandra, mas também pelo apuro técnico, excelente qualidade da animação e belíssimo design. Como Disney é Disney (lembrem-se, passinhos...), o filme mantém diversos elementos mais infantis e clichês do estúdio, como os personagens fofinhos e cômicos, com destaque para o sensacional tatu-bola Tuk Tuk, um misto de pet com montaria e que é por si só um elemento de fantasia brilhante, e a bebê vigarista Noi, fofíssima e hilária, mas que guarda o risco de tirar alguns espectadores do clima de aventura do filme, por ser um pouco (pouquinho) excessivamente cartunesco. Todos os personagens que Raya vai encontrando e que vão se juntando à empreitada são ótimos, mas o grande destaque é mesmo Sisu, principal ponto de humor do filme mas também uma personagem de uma inocência que colide com a alma endurecida de Raya. Awkwarfina dá um show na voz de Sisu, que gravou seus diálogos no mesmo estilo de Robin Williams como o Gênio de Aladdin, improvisando boa parte do texto. 

Talvez o principal acerto de Raya ao se inspirar nos filmes do Ghibli seja em um aspecto em que Encanto também acertou e Luca falhou miseravelmente: os vilões. Em Raya não há vilão, mas antagonistas, a e principal é Namaari. Ao escrevê-la como uma personagem que não é “má” (nem a mãe de Namaari é vilã, apesar de tudo), os roteiristas dão à história uma dimensão mais delicada, menos maniqueísta, e uma verdade maior para cada um que busca proteger seus próprios reinos. Isso enriquece o drama, mas não diminui a força da mensagem do filme, de que toda a fonte do “mal” que devastou aquele mundo vem das disputas de poder dos humanos e de seus maus sentimentos, inclusive a própria existência dos Drunn. A relação entre Raya e Namaari mantém sempre uma tensão dramática elevada, e suas semelhanças, mais que suas diferenças, farão diferença ao final.

Os passinhos lentos da Disney a trouxeram até aqui, ainda que a equipe criadora de Raya tenha planejado algo mais ousado. Em versões preliminares do roteiro e dos desenhos de produção, a história tinha bem mais violência e Raya possuía um braço prostético. Não é mais do que o público é capaz de lidar hoje em dia. Mas é mais do que a Disney está disposta a arriscar. Raya podia ser um pouquinho só mais bruto, um pouquinho só menos fofo e engraçado. Mas do jeito que é já entrega uma princesa como o estúdio jamais mostrou. Raya faz história e nos traz um belo filme.

 

COTAÇÃO:


INDICAÇÃO AO OSCAR:

Melhor longa de animação

 

RAYA E O ÚLTIMO DRAGÃO (Raya and the Last Dragon, EUA – 2021)

Com: Kelly Marie Tran, Awkwafina, Izaac Wang, Gemma Chan, Daniel Dae Kim, Benedict Wong e Sandra Oh

Direção: Don Hall e Carlos López Estrada

Co-direção: John Ripa e Paul Briggs

Roteiro: Qui Nguyen e Adele Lim

Fotografia: Rob Dressel

Montagem: Fabienne Rawley e Shannon Stein

Música: James Newton Howard

Design de produção: Helen Mingjue Chen, Paul A. Felix e Cory Loftis

quarta-feira, 2 de março de 2022

Os filmes do Oscar: NÃO OLHE PARA CIMA – 4 indicações

Por Ricky Nobre

Adam McKay parece ser o novo amado da Academia. Desde o excelente A Grande Aposta, seus filmes são presença obrigatória na lista de indicados. Seu novo filme parece que pegou a tempestade perfeita. Originalmente concebido como uma metáfora dos tempos atuais de negacionismo, manipulação da opinião pública e fake news em geral e do aquecimento global em particular, Não Olhe Para Cima é uma sátira um tanto desconfortável e absurda (como é próprio das sátiras) que conjectura como um evento catastrófico global seria absorvido em uma conjuntura social e cultural como a atual. Provavelmente seria um filme de pouco alcance e impacto no público. Talvez sua sátira fosse compreendida de forma diferente, não se sabe. Mas algo aconteceu que alterou completamente o perfil da obra em comparação à sua concepção: o filme foi lançado durante um evento catastrófico global.

 

A pandemia de Covid-19 surgiu como um cometa no início de 2020 trazendo, quem diria, fake news, negacionismo e manipulação da opinião pública, além de um longo adiamento no início das filmagens, que aconteceriam em abril e passaram para novembro. Não é possível mensurar o impacto da pandemia e de que forma os artistas envolvidos absorveram as semelhanças entre o roteiro e o que de fato aconteceu nos EUA e no mundo no que se refere ao enfrentamento da doença. Mas com certeza foi significativo, e adicionou mais camadas à sátira. 

 

No filme, dois astrônomos descobrem um cometa de 9 quilômetros de diâmetro (um “assassino de planetas”) rumando diretamente para a Terra. Ao se encontrarem com a Presidente dos EUA e outras autoridades, descobrem que a prioridade são as eleições e a imagem do governo. O filme acompanha o desespero dos cientistas em alertar a população, a letargia alegre da mídia, polarização política e a ganância do capitalismo. 

 

Com os cinemas pouco frequentados por causa da Covid, o filme teve um lançamento limitado nas salas por três semanas, sendo lançado depois na plataforma da Netflix, que havia comprado o projeto da Paramount ainda em fevereiro de 2020. Lançado no final de dezembro de 2021 no streaming, o filme caiu como uma bomba, tornando-se o conteúdo recordista de visualização da Netflix. O público em sua maioria enxergou uma metáfora da pandemia e tornou o filme assunto onipresente nas redes sociais. 

 

Não dá pra fingir que Não Olhe Para Cima não foi lançado num mundo completamente diferente daquele em que o roteiro foi escrito. Ou melhor, não tão diferente assim. Diferente, mas igual. E esse é o segredo do sucesso do filme. Ao se relacionar a posteriori e muito diretamente à pandemia, o filme expandiu drasticamente seu público alvo, tornando a sátira muito mais evidente, mas também mais incômoda e perturbadora. Uma sátira não deve necessariamente ser engraçada. Ser perspicaz ou mordaz é, em diversas ocasiões, mais importante do que a busca do riso. Mas não é tarefa fácil apontar o quanto que esse incômodo vem da forma como o filme foi escrito e dirigido e o quanto vem do fato de que a proximidade do público com o assunto em questão faz a mensagem descer rasgando.

 

O filme tem um excelente elenco, mas o brilho de fato está com DiCaprio e Lawrence. O primeiro constrói um cientista inseguro, esmagado pela máquina estatal e midiática, que, ao tentar contornar sua inabilidade de comunicação com o público em geral, acaba por se tornar mais uma peça das engrenagens do poder. Já Lawrence representa a visão do público e sua vontade de xingar e socar todos os demais personagens do filme. Os dois dão a impressão de carregarem o filme nas costas, mas de fato eles nos carregam através de um emaranhado de absurdos muito bem armado por McKay e pela montagem de Hank Corwin. A piada aparentemente tola do general que cobra por água e amendoins que seriam de graça é uma versão micro da ganância capitalista, que surge bem mais adiante no filme, e que é apresentada como o grande carrasco da Humanidade no fim das contas. O filme até que poderia tem alguns minutos a menos (a relação entre os personagens de DiCaprio de Blanchet não é muito bem escrita e poderia ser encurtada), mas o tempo dispendido nas relações entre personagens não é perdido, pois essas relações são essências para se contrapor à loucura e à desonestidade (e desumanidade) que os protagonistas enfrentam.

 

Qualquer argumento que aponte como um problema os absurdos do roteiro, como a quase exclusiva (quando acontece) ação estadunidense na crise, a reação popular e governamental diante de uma ameaça tão extrema, ou qualquer coisa do gênero, colide frontalmente com o perfil satírico com o qual o filme foi concebido, onde o exagero de situações bizarras evidencia questões do mundo real. O absurdo é um dos principais instrumentos da sátira. E muito da agonia que venha a ser sentida pelo espectador vem de percepções pontuais de que os absurdos na tela se apequenam diante dos absurdos da realidade. “Não Olhe Para Cima”, que é o contra slogan do governo ao “Olhe Para Cima” dos cientistas, é o resumo do negacionismo e da política que mata, trazendo por trás sempre algum grande interesse econômico e político. O filme pode não possuir o brilhantismo de A Grande Aposta. Mas Adam McKay conseguiu, ainda que inadvertidamente, realizar um filme símbolo de seu tempo, que poderá ser usado como exemplo de sua época daqui a décadas.

 

COTAÇÃO:


 

INDICAÇÕES AO OSCAR:

Melhor filme

Roteiro original: (argumento: Adam McKay e David Sirota)

Montagem: Hank Corwin

Música original: Nicholas Britell

 

NÃO OLHE PARA CIMA (Don’t Look Up, EUA – 2021)

Com: Leonardo DiCaprio, Jennifer Lawrence, Meryl Streep, Cate Blanchett, Rob Morgan, Jonah Hill, Mark Rylance, Tyler Perry, Timothée Chalamet, Ron Perlman, Ariana Grande, Himesh Patel e Melanie Lynskey.

Direção: Adam McKay

Roteiro original: (argumento: Adam McKay e David Sirota)

Fotografia: Linus Sandgren

Montagem: Hank Corwin

Música original: Nicholas Britell

Design de produção: Clayton Hartley