sexta-feira, 4 de março de 2022

Os filmes do Oscar: RAYA E O ÚLTIMO DRAGÃO – 1 indicação

Por Ricky Nobre

O público de hoje problematiza facilmente (com certa razão), a personagem Ariel de A Pequena Sereia (1988), onde ela desiste de sua própria voz por um príncipe que mal conhece. Mas quem inserir o filme no contexto em que foi lançado, ou ter idade para ter visto em sua estreia nos cinemas, pode lembrar do impacto que foi ver, pela primeira vez, a princesa salvando a vida do príncipe. Pode não parecer nada hoje, mas na época foi um passo gigante. No filme seguinte, A Bela e a Fera, a heroína era culta, valorizava a leitura e era avessa à pequenez da mentalidade provinciana e aos avanços de Gaston, o maior “heterotop” da animação. Tá bom que o filme romantizava completamente uma relação extremamente abusiva, mas a Disney só dá um passinho de cada vez mesmo. Às vezes dois pra frente e um pra trás. E de passinho em passinho, se passam 35 anos, e chegamos a Raya.

O mais interessante de perceber nos indicados a melhor longa-metragem de animação deste ano são os três lançados pelo gigante conglomerado Disney, dois da Disney Animation (Raya e Encanto) e um da Pixar (Luca). Por mais radicalmente diferentes que esses três filmes pareçam (ou sejam) entre si, eles guardam um denominador comum: o efeito que os filmes do Studio Ghibli, particularmente os de Hayao Miyazaki, tiveram sobre seus criadores. O sucesso que cada um teve em usar algumas características desses filmes é variável, mas está claramente lá. E dos três pode-se dizer que Raya foi o mais bem-sucedido. 

No Reino de Kumandra, os mágicos dragões se sacrificaram para salvar a humanidade dos terríveis Drunn, e tudo que sobrou de sua magia foi guardada numa esfera luminosa. A cobiça da humanidade pelo poder da esfera dividiu Kumandra em cinco nações inimigas e, após 500 anos, um ataque termina com a quebra da esfera em cinco partes e a volta dos temidos Drunn. Cabe à jovem Raya, filha do líder que protegia a esfera, procurar o último dragão e tentar restaurar o artefato a partir de seus fragmentos e restaurar Kumandra, quase totalmente devastada.

Raya segue o caminho já iniciado em Moana (pois é, passinhos...) ao tomar para si a tarefa de salvar sua terra, com o agravante de carregar na consciência parte da responsabilidade pelo ocorrido. Tendo sido treinada como guerreira, ela vaga por pelo cenário pós apocalíptico por seis anos numa busca desesperada por uma solução. Em mais um passo adiante para o estúdio do rato, Raya é a primeira princesa Disney que não canta, e essa ausência de números musicais é um dos vários elementos que contribuem para um perfil um pouco menos infantil e mais juvenil do filme. A forma como o mundo de Kumandra e seus posteriores reinos, sua política e cultura, o cenário desolador pós quebra da esfera, tudo isso constrói uma ambientação que remete facilmente a filmes de Miyazaki como Nausicaä e Princesa Mononoke, assim como a própria figura de Raya lembra as heroínas não apenas do Studio Ghibli mas vários outros animes.

Todo o visual do filme é deslumbrante, seja pela cuidadosa pesquisa da cultura do sudeste asiático que inspirou Kumandra, mas também pelo apuro técnico, excelente qualidade da animação e belíssimo design. Como Disney é Disney (lembrem-se, passinhos...), o filme mantém diversos elementos mais infantis e clichês do estúdio, como os personagens fofinhos e cômicos, com destaque para o sensacional tatu-bola Tuk Tuk, um misto de pet com montaria e que é por si só um elemento de fantasia brilhante, e a bebê vigarista Noi, fofíssima e hilária, mas que guarda o risco de tirar alguns espectadores do clima de aventura do filme, por ser um pouco (pouquinho) excessivamente cartunesco. Todos os personagens que Raya vai encontrando e que vão se juntando à empreitada são ótimos, mas o grande destaque é mesmo Sisu, principal ponto de humor do filme mas também uma personagem de uma inocência que colide com a alma endurecida de Raya. Awkwarfina dá um show na voz de Sisu, que gravou seus diálogos no mesmo estilo de Robin Williams como o Gênio de Aladdin, improvisando boa parte do texto. 

Talvez o principal acerto de Raya ao se inspirar nos filmes do Ghibli seja em um aspecto em que Encanto também acertou e Luca falhou miseravelmente: os vilões. Em Raya não há vilão, mas antagonistas, a e principal é Namaari. Ao escrevê-la como uma personagem que não é “má” (nem a mãe de Namaari é vilã, apesar de tudo), os roteiristas dão à história uma dimensão mais delicada, menos maniqueísta, e uma verdade maior para cada um que busca proteger seus próprios reinos. Isso enriquece o drama, mas não diminui a força da mensagem do filme, de que toda a fonte do “mal” que devastou aquele mundo vem das disputas de poder dos humanos e de seus maus sentimentos, inclusive a própria existência dos Drunn. A relação entre Raya e Namaari mantém sempre uma tensão dramática elevada, e suas semelhanças, mais que suas diferenças, farão diferença ao final.

Os passinhos lentos da Disney a trouxeram até aqui, ainda que a equipe criadora de Raya tenha planejado algo mais ousado. Em versões preliminares do roteiro e dos desenhos de produção, a história tinha bem mais violência e Raya possuía um braço prostético. Não é mais do que o público é capaz de lidar hoje em dia. Mas é mais do que a Disney está disposta a arriscar. Raya podia ser um pouquinho só mais bruto, um pouquinho só menos fofo e engraçado. Mas do jeito que é já entrega uma princesa como o estúdio jamais mostrou. Raya faz história e nos traz um belo filme.

 

COTAÇÃO:


INDICAÇÃO AO OSCAR:

Melhor longa de animação

 

RAYA E O ÚLTIMO DRAGÃO (Raya and the Last Dragon, EUA – 2021)

Com: Kelly Marie Tran, Awkwafina, Izaac Wang, Gemma Chan, Daniel Dae Kim, Benedict Wong e Sandra Oh

Direção: Don Hall e Carlos López Estrada

Co-direção: John Ripa e Paul Briggs

Roteiro: Qui Nguyen e Adele Lim

Fotografia: Rob Dressel

Montagem: Fabienne Rawley e Shannon Stein

Música: James Newton Howard

Design de produção: Helen Mingjue Chen, Paul A. Felix e Cory Loftis

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