Por Ricky Nobre
Falar sobre o período ditatorial no Brasil foi uma tácita obrigatoriedade
no cinema, teatro e literatura brasileira após a abertura política, em 1979. Após
tantos anos de repressão, todos queriam falar tudo que estava abafado, reprimido,
entalado. Filmes como Pra Frente, Brasil e documentários como Que Bom Te Ver
Viva foram marcantes em seus lançamentos, resgatando as atrocidades dos anos de
chumbo. Com o fim do regime militar, vinha, além de esperança de tempos
melhores, a certeza de que um período como aquele jamais, sob a vigilância
popular, se repetiria, pois estava marcado em brasa em nossa memória.
Deslembro chega ao circuito comercial um ano após sua
estreia no Festival de Veneza e do triunfo no Festival do Rio, onde levou os
prémios popular e do júri de melhor filme e de melhor atriz coadjuvante. Chega em
um momento em que vozes muito proeminentes ecoam em parte considerável da população
pondo em dúvida o que ocorreu no país nas décadas de 60 e 70. Vozes que negam a
memória de uma tragédia na política brasileira. O resgate da memória, ainda que
turva, fragmentada e inexata, é o tema central de Deslembro.
A adolescente Joana volta (muito a contragosto) ao Brasil
com sua mãe, padrasto e meio irmãos após muitos anos no exílio em Paris,
iniciado após o desaparecimento de seu pai, dado como morto pelas mãos do
aparelho repressivo do regime. No Rio de Janeiro, ela permanece exilada em seu
quarto, junto com sua inseparável coleção de livros e discos de rock, sem
vontade alguma em se adaptar a esse “país de merda que tortura e mata gente”. Aos
poucos, o contato com pessoas ligadas ao seu pai vão abrindo pequenas portas em
sua cabeça. Pela avó, descobre que sua paixão por livros é algo que tem em
comum com o pai. Com um amigo da família, descobre que o pai cantava e amava
samba, gênero musical também preferido do jovem Ernesto com quem ela descobre o
amor, o sexo e a maconha. Daí, fragmentos de memórias vão voltando salteadas e
desconexas, das quais ela tenta tirar sentido junto à avó, uma vez que a mãe se
fecha a qualquer assunto relacionado ao pai morto.
Flávia Castro formou uma carreira em documentários,
principalmente com o premiado Diário de Uma Busca. Aventurou-se na ficção
primeiro como roteirista em Nice: O Coração da Loucura. Deslembro é sua
primeira ficção como diretora, onde também aturou como roteirista e montadora. Em
praticamente todos os departamentos existe uma forte presença feminina na
equipe, seja na produção, fotografia, som, montagem ou direção de arte. É basicamente
feminino o olhar que constrói o de Joana sobre o mundo ao seu redor, que lhe é
estranho e familiar ao mesmo tempo. O olhar do filme é o de Joana, seja na
percepção direta do aqui e agora (o mar, o chão, as texturas, a música, o toque
da pele), seja nos fragmentos de memórias de uma infância muito tenra que lhe
trazem lampejos de seu pai, que lhe escapam.
A montagem é propositadamente desconexa, onde os fragmentos
de memória se confundem com o presente, cujos eventos podem ser ligados por
grandes elipses. Isso pode gerar certa confusão ao acompanhar fatos e nomes,
mas o roteiro cuida de conectar tudo perto da conclusão, mas o sucesso disso
não é total. Ao mesmo tempo em que existe delicadeza nas buscas, sensações e
descobertas de Joana, existe também uma certa frieza, um certo vácuo emocional,
provavelmente pelo fato dos dois personagens centrais, Joana e a mãe, terem personalidades
fechadas, esta última especificamente no que se refere ao pai desaparecido. Desta forma, a maior luz do filme vem da
avó, uma personagem aberta, calorosa, agregadora. Com o talento de Eliane Giardini,
a avó é o grande respiro de alegria e amor do filme. Esse contraste pode ter
sido a intenção da diretora, mas existe um potencial de carga emocional em
Joana e sua busca que nunca é devidamente explorada, exceto na cena clímax do
filme. Ainda que a intenção tenha sido essa, não se sente essa potência
emocional ao longo do filme, onde ela é mais uma informação do que um
sentimento. E é principalmente nesse sentido que a personagem da mãe se mostra
o mais mal explorado de todos, devido à sua importância e posição na história,
ainda que pese a escolha de Joana como o centro absoluto da narrativa.
A ausência de uma partitura musical original também pode ter
contribuído para esse vácuo emocional, mas esta é uma escolha estética da qual
a direção deve dar conta, uma vez decidida. A música de Deslembro vem do Lou
Reed e The Doors que Joana ouve e, de forma muito inteligente, do samba que
vem, de várias direções, invadir a vida de Joana, fortalecendo a conexão que
ela tenta encontrar e estabelecer com o pai desaparecido.
Por fim, Joana precisa tanto lembrar quanto deslembrar sua
infância para desvendar o destino o pai. Mas para isso, é essencial a
comunicação, o compartilhamento de lembranças. Deslembro chega num momento
essencial em que a memória de nossa história recente está sendo negada e
correndo o risco que a História sempre tem de se repetir. A memória precisa ser
mantida, resgatada e compartilhada.
COTAÇÃO:
DESLEMBRO (2018)
Com: Jeanne Boudier, Sara Antunes, Eliane Giardini, Hugo
Abranches, Arthur Raynaud, Jesuíta Barbosa, Antonio Carrara e Marcio Vito
Direção e roteiro: Flávia Castro
Montagem: François Gedigier e Flavia Castro
Fotografia: Heloisa Passos
Produtores: Walter Salles, Gisela B.Camara, Flavia Castro
Desenho de produção: Ana Paula Cardoso
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