sábado, 11 de março de 2023

Os filmes do Oscar: TUDO EM TODO LUGAR AO MESMO TEMPO – 11 indicações

Por Ricky Nobre

Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo varreu a paisagem cinematográfica de 2022 como um tornado. Seja a maioria que idolatra, a minoria que odeia ou a razoável parcela que considera apenas um bom filme, ninguém ficou indiferente ao que é um dos maiores fenômenos de popularidade do cinema recente, que abarcou tanto o público quanto a crítica. Tudo o que o filme é em sua essência, forma e conteúdo, causa um fascínio profundo ou intensa repulsa. Repulsa essa que seria leviano argumentar que seria uma mera reação ao status de revolucionário que o filme vem recebendo. Mas o filme de fato revoluciona alguma coisa? De onde vem todo esse poder que o filme emana para causar tanto impacto?

 

O filme apareceu num momento em que o público já estava preparado para o conceito de multiverso. O que antes era conhecido apenas pelos leitores de quadrinhos e ficção científica, começou a ganhar mais espaço no universo cinematográfico da Marvel e na animação Rick and Morty, o que já deixou uma parcela do público mais familiar com o conceito de universos paralelos que abrigariam versões diferentes de nós mesmos. A dupla de cineastas Daniel Kwan e Daniel Scheinert (ou Os Daniels) desenvolveu sua história de multiverso de forma bem peculiar. Uma das formas de definir o filme seria como uma comédia dramática de fantasia com uma casca de ficção científica bem fininha. Ao estabelecer Evelyn (Michelle Yeoh no papel de sua vida) como sua heroína, os Daniels procuram passar ao espectador toda a sensação de absurdo que ela sente diante de tudo que lhe é proposto. Se o conceito de infinitos universos paralelos soa como algo absurdo, eles escolhem escancará-lo exatamente através de um humor absurdista.

 

A partir daí, é preciso reconhecer uma grande qualidade da direção que é a de não ter medo do ridículo, o que é algo sempre muito arriscado. Existir um universo onde as pessoas têm mãos de salsicha ou ter que sentar num troféu em formato de plugue anal para acessar uma habilidade de outro universo são coisas que o filme apresenta sem um pingo de constrangimento, sob o mote de que “não faz sentido, mas funciona”. O grande risco é a possibilidade desse besteirol de inviabilizar o potencial dramático do filme, que é considerável e no qual os diretores também mergulham.

 

Este é um filme cujo tom não é fácil sequer de conceber, que dirá construir, pois é formado de elementos a princípio inconciliáveis, como emoções genuínas de um drama familiar, quase à beira do melodrama, humor escrachado, dilemas filosóficos e artes marciais, tudo isso entremeado por um vai e vem cada vez mais histérico entre os universos. A montagem faz um malabarismo gigantesco ao costurar todos esses elementos, e faz isso muitíssimo bem na maior parte do tempo, e seu papel em conseguir construir esse tom é crucial. Toda a produção é muito inventiva também em criar uma identidade visual, através do design de produção, figurinos e fotografia, considerando não só o baixíssimo orçamento para um filme desse porte (apenas 25 milhões de dólares), mas principalmente a natureza da história que pede uma mudança drástica de visual a cada mudança de universo. São particularmente fascinantes o grande salão branco da vilã, o universo em que Evelyn é uma estrela, onde é tudo muito cool e refinado (onde os diretores se inspiraram no cinema de Wong Kar-Wai) e a já famosa cena onde as personagens são pedras. Em contrapartida, algumas sequências não funcionam muito bem. O trabalho de câmera da primeira luta não é muito bom, e a manipulação da velocidade e do framerate dá um aspecto meio amador, principalmente em comparação com as lutas posteriores, muito melhor realizadas.

 

Mas o que talvez seja o principal elemento que vem capturando tanto os corações do público seja o relacionamento familiar, o drama entre Evelyn e o marido e, principalmente, ela e a filha. Um drama que parte principalmente da entrega ou não dos personagens ao niilismo, advindo da percepção das personagens da vastidão do multiverso e de suas múltiplas possibilidades pessoais, em direção a uma conclusão de que nada faz sentido e nada, de fato, importa. Se a filha se entregou a esse niilismo, a partir das pressões e expectativas da mãe, cabe justamente a essa mãe, passando pela mesma experiência, não seguir pelo mesmo caminho. E essas reflexões sobre os caminhos que escolhemos, como nossas decisões moldam nossa vida e que sentido tudo isso tem afinal, ressoou de forma impressionante junto ao público. E o fato de que tudo isso venha nesse pacote inesperado que é esse delírio estético, um caos controlado, mas que parece sempre à beira do descontrole e, quase sempre, descaradamente divertido, tornou Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo um fenômeno.

 

Um problema que o filme enfrenta é sua característica hiper expositiva, que é algo que incomoda (ou não) cada pessoa em níveis diferentes. A princípio, o roteiro é bem hábil em administrar todo o texto necessário para explicar o que está acontecendo, pois a protagonista e o público precisam saber qual é o histórico e a lógica de tudo aquilo, e isso é muito bem entremeado com toda a ação do filme, e não se tem a sensação que o filme empaca para que explicações sejam dadas. Porém, em seu terceiro ato, parece haver uma certa overdose de reafirmação do que os personagens estão tirando de tudo aquilo. Talvez ao fragmentar essa jornada das personagens ao abismo niilista e de que forma elas tentam sair, picotando essas reflexões entre as diversas versões das personagens em cada universo, essa exposição se torna excessivamente repetida e não dando muita margem a outras interpretações e, até certo ponto, limitando essas discussões a uma superfície específica, apesar da aparência de profundidade, ainda que o potencial dessas questões seja, de fato, profundo. 

 

Se esse filme é revolucionário, como tanto vem sendo dito, ou não, é provável que não seja algo a ser respondido agora. Obras verdadeiramente disruptivas nunca foram reconhecidas como tal em suas épocas. Isso é obra do tempo. O que os Daniel fizeram foi pegar muitas ideias, propostas narrativas e estéticas, que já estavam por aí e reorganizá-las de um jeito particular e que o público não está muito acostumado a ver, a exemplo de como Tarantino construiu sua filmografia quase que exclusivamente partindo das produções B e exploitation e as retrabalhando a partir de suas incríveis sensibilidades estética e narrativa, dando origem a algo novo que foi imensamente influente em outras obras. Não quer dizer que Tarantino tenha sido revolucionário ou disruptivo, mas que ele criou algo que gerou uma marca e uma onda de influências a partir dele.

 

A forma como esse filme está verdadeiramente emocionando as pessoas não pode ser ignorada. Se a temática do filme e a jornada dos personagens têm uma aparência de profundidade maior do que elas são de fato desenvolvidas, elas ainda assim ressoam fortemente junto ao público que, sob os ecos de suas experiências pessoais, adicionam a profundidade que o filme ensaia, mas não mergulha. O que salva o filme de soar como uma metralhadora de filosofismo vazio é justamente essa forma tão despojada, esse espírito de não ter medo do caos nem do ridículo. Se o terceiro ato se perde em constantes reafirmações de sua “mensagem”, isso faz parte justamente dessa estética barroca, dessa onipresença do excesso, de tudo em todo lugar ao mesmo tempo. Esse filme é um pacote que é preciso comprar inteiro. E se ele é um clássico revolucionário ou uma modinha a ser esquecida em breve, o tempo, como sempre, é quem decide.

 

COTAÇÃO:


 

INDICAÇÕES AO OSCAR:

Melhor filme

Diretor:  Daniel Kwan e Daniel Scheinert

Atriz: Michelle Yeoh

Ator coadjuvante: Ke Huy Quan

Atriz coadjuvante: Jamie Lee Curtis

Atriz coadjuvante: Stephanie Hsu

Roteiro original: Daniel Kwan e Daniel Scheinert

Montagem: Paul Rogers

Música original: Son Lux

Canção original: "This is a Life" de Ryan Lott, David Byrne e Mitski

Figurino: Shirley Jurata


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