Por Ricky Nobre
Uma das principais forças do novo longa de Sarah Polley é a atemporalidade de sua denúncia. Baseado em um caso escabroso ocorrido em uma comunidade menonita na Bolívia entre 2005 e 2009, posteriormente adaptado para um livro ficcional no qual o roteiro se baseia, Entre Mulheres parte de toda a paisagem “congelada no tempo” da comunidade fundamentalista cristã e nos dá uma primeira impressão de que estamos diante de um filme de época. Lentamente, elementos são introduzidos, como um cigarro, um detalhe de uma vestimenta, um utensílio de cozinha, e o espectador vai ajustando a provável faixa de tempo em que o filme se passa, até que um autofalante em uma caminhonete anuncia o censo de 2010. O que parecia horrendo mesmo para algum momento do século XVIII, como parecia ser inicialmente, torna-se ainda mais terrível ao ser ambientado agora, em pleno século XXI.
A frase que abre o filme (“o que se segue é um exercício de imaginação feminina”), funciona como uma ironia diante de todo o silenciamento e difamação as quais as mulheres são vítimas quando fazem denúncias de violência. O filme é basicamente o que diz o título original: mulheres falando. E a urgência dessa comunicação vem da necessidade em decidir se elas permanecem na comunidade e “perdoam” seus agressores, como lhes foi exigido pelos homens, se ficam e lutam ou se partem. Tal é essa urgência, esse foco nas discussões como algo imprescindível, que a diretora resume os acontecimentos que levaram a tudo aquilo com cenas rápidas costuradas por uma narração em off.
Em seu pouco tempo de duração, o filme consegue estabelecer bem suas personagens e o que mais as move, seja raiva, medo, razão, amor, dever. É curioso como o estilo dos diálogos soa um tanto metamorfo, ora totalmente coloquial, ora praticamente literário, distante de qualquer realismo, o que não parece ser um descuido do roteiro, sendo, talvez, um recurso para valorizar a complexidade do que está sendo discutido, sem entregar-se a pormenores mais práticos, como o fato de que todas aquelas mulheres são analfabetas. A participação do único personagem masculino, o jovem August, além da função prática de anotar o conteúdo das reuniões, tem uma função simbólica muito relevante, uma vez que ele é filho de uma mulher expulsa da comunidade exatamente por questionar tudo que acontecia por lá, o que o faz ter um olhar totalmente solidário com o que as mulheres passam.
As escolhas fotográficas de Polley, porém, são bastante controversas. A paleta de cores extremamente dessaturada, à beira da monocromia, tenta transmitir o mundo triste e sem perspectivas onde essas mulheres vivem. O problema é que essa monocromia vem acompanhada de uma marcação de luz que achata os pretos e demais tons escuros e, em vários momentos, dá à imagem uma impressão de um filtro barato de celular, o que é praticamente inacreditável para um filme rodado em digital 8K com uma lente anamórfica Panavision. Essa combinação, aliás, gerou uma proporção de tela larguíssima, de 2,76:1, o que é uma escolha muito inesperada, mas curiosa. Vale lembrar que essa proporção nasceu em fins da década de 50, combinando a lente anamórfica com negativo 70mm, para ser usada em grandes épicos, como foi em Ben-Hur, caindo no esquecimento logo depois. Foi, porém, resgatada recentemente por Tarantino para Os 8 Odiados que, apesar de ser um western, é basicamente um filme com oito personagens falando num único ambiente interno, aproveitando o largo espaço como um palco onde os personagens têm livre movimentação. Da mesma forma, Polley usa a larga janela da tela para acomodar suas personagens num mesmo plano, embora ela não lance tanto mão deste recurso quanto poderia, mas, mesmo assim, valorizando a experiência de ver no cinema um filme que é praticamente todo de personagens conversando. Ainda assim, o formato de tela dá uma dimensão mais épica da última cena, aí sim, evocando grandes westerns.
A proposta da diretora de privilegiar ao máximo os diálogos entre as mulheres pelo seu valor simbólico, como se a libertação feminina dependesse 100% dessa comunicação, acabou por descartar possibilidades dramáticas muito boas, resumindo em poucos minutos o que poderia ser um forte primeiro ato. A estranha fotografia e sua desastrosa manipulação das cores acabam prejudicando a experiência, porém, mesmo assim, o excelente elenco garante que a proposta de Polley atinja seu potencial, que é mostrar é pela troca de ideias e ações em conjunto que as mulheres poderão sobreviver num mundo que as odeia.
COTAÇÃO:
INDICAÇÕES AO OSCAR:
Melhor filme
Roteiro adaptado: Sarah Polley, baseado no livro de Miriam Toews
ENTRE MULHERES (Women Talking, EUA – 2022)
Com: Rooney Mara, Claire Foy, Jessie Buckley, Frances McDormand, Judith Ivey, Kate Hallett, Liv McNeil, Sheila McCarthy, Michelle McLeod e Ben Whishaw.
Direção e roteiro: Sarah Polley
Fotografia: Luc Montpellier
Montagem: Christopher Donaldson e Roslyn Kalloo
Música: Hildur Guðnadóttir
Design de produção: Peter Cosco
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