quarta-feira, 8 de março de 2023

Os filmes do Oscar: ELVIS – 8 indicações

Por Ricky Nobre

Apesar de ser o artista que mais vendeu discos em toda a História e um dos ícones pop mais reconhecíveis do mundo, Elvis Presley nunca teve uma biografia para o cinema, e as pouquíssimas realizadas foram produções para a TV. Mas o novo Elvis, de Baz Luhrmann, não é uma cinebiografia. É uma narrativa mitológica, contada pelo vilão, sobre a ascensão e a queda de um Rei. Luhrmann jamais, em sua sólida e bissexta carreira, foi conhecido pelo realismo de seus filmes. Ele é um artista da fantasia, da hipérbole, da cafonice luxuosa, da música, dos grandes amores e de muitos excessos, num cinema maneirista marcado, acima de tudo, pela hiperestilização. Para que Luhrmann chegasse até Elvis era uma questão de tempo. 

 

Elvis é um delírio visual desde o primeiro segundo. A frenética montagem costura uma câmera que jamais descansa na tentativa de sintetizar o máximo possível da história em 159 minutos. Especialmente no início, é nítida a sensação de estarmos assistindo a um trailer, com a narrativa detendo-se em quase nada, além de, levemente, na primeira apresentação ao vivo de Elvis mostrada no filme. Após os primeiros 30 minutos, começamos a ter a sensação de que o diretor já está perdendo o controle desse trem desgovernado que é sua narrativa, mas é justamente a esta altura que Luhrmann começa a pisar no freio. Não, o filme não fica menos acelerado ou menos delirante, ele só começa a escolher momentos para respirar e passagens da história para se deter com mais atenção e detalhes.

 

Mas o delírio também é musical. É consenso que qualquer filme de época tenta transportar o espectador para o período retratado, dando uma sensação de viagem no tempo. Mas não apenas a abordagem visual de Elvis quebra esse paradigma, mas também a abordagem musical. Certos trechos musicais são gravações originais da época, outras são regravações idênticas às originais, outras já inserem arranjos e instrumentações posteriores à época retratada em diversos graus de intensidade, chegando até sons totalmente contemporâneos, como Doja Cat ou Eminem em plena década de 1950. Talvez seja uma tentativa de Luhrmann em estabelecer a extensão da influência da Elvis na música até hoje, mas às vezes não funciona muito bem, ainda que ecoe trabalhos anteriores do diretor, como Moulin Rouge

 

Porém, mais do que contar a vida de Elvis a partir de seu estilo muitíssimo particular, Luhrmann tem uma ideia muito precisa do que quer, e esta é, basicamente, mostrar um Elvis absolutamente bom, honesto, íntegro e apaixonado por música e por seus fãs. O diretor escolhe olhar seu protagonista com o mais benevolente dos filtros, na contramão de releituras atuais que dão conta de diversos comportamentos questionáveis. Alguns ele simplesmente ignora, como o fato de Priscilla ter 14 anos e ele 24 quando se conheceram, e seu alinhamento político com Nixon sequer é mencionado, enquanto a responsabilização de seu vício em drogas é totalmente colocada em Tom Parker. Aliás, sim, Parker. Sua escolha como o narrador do filme foi polêmica, e muito se falou do quanto isso tira o protagonismo de Elvis em seu próprio filme. Mas como foi dito no início, não é uma cinebiografia normal. É a história de um mito, um rei, um deus, e ela é, portanto, convenientemente narrada por uma testemunha. Só que não é uma testemunha confiável, e o contraste entre o que Parker conta e o que vemos cria uma tensão constante. Aliás, a escolha de dar a Parker um bizarro sotaque pseudo europeu tira todo o propósito de tratar como um “mistério revelado” o fato do personagem não ser americano, e Luhrmann finca mais o pé em sua proposta antirrealista. 

 

Mas a grande defesa que Luhrmann faz de Elvis está intrinsecamente ligada à concepção do filme e ao principal elemento que torna este uma obra tão bem-sucedida sobre o artista: é um filme sobre música. É extremamente comum que filmes que falam da vida de artistas ponham a arte dessas pessoas em segundo, terceiro ou em último plano, virando um mero “pano de fundo”, como se essa arte que criavam não tivesse importância alguma, apenas os dramas, erros e tragédias de suas vidas. Mas a música em Elvis é central, desde seu processo de criação (toda a sequência onde Elvis cria o estilo dos shows de Las Vegas é excepcional), até a necessidade do artista ser em fiel a si mesmo (como na cena do show sob os olhos da polícia), até sua importância como expressão pessoal (como a criação da música final do Especial de 68). Porém o ponto vital nisso tudo é de onde veio a música de Elvis. E daí vem a principal defesa dele feita por Luhrmann.

 

Elvis tem sido muito acusado de apropriação cultural, a partir de um olhar contemporâneo. Ele seria um artista branco que teria tomado para si um estilo musical totalmente criado por artistas negros, ostentando um título de Rei do Rock que jamais poderia ser dele. O filme estabelece claramente o som de Elvis como uma mistura do “som dos negros” com country music branca, o que de fato era uma característica de roqueiros brancos seminais, como Jerry Lee Lewis e Carl Perkins. Mas o principal elemento é como Luhrmann narra o contato de Elvis com a música negra, a partir do período onde morou num bairro de negros quando criança, onde conheceu a música lasciva do blues de cabaré que ele ouvia do lado de fora e do gospel das igrejas, onde o pequeno Elvis parece totalmente possuído pelo espírito da música, pontuando mais adiante com influências diretas de Big Mama Thornton e Rosetta Tharpe, e a posterior amizade com BB King. Forjando também um “acolhimento” dos artistas negros para com Elvis, Luhrmann meio que santifica essas influências, transformando o “roubo” em “inspiração”, na busca por legitimar sua integridade artística, culminando na já citada cena do ensaio para Las Vegas, onde That’s All Right Mama é intercalada nas versões blues de cabaré, a primeira versão gravada por Elvis na Sun e, por fim, a versão de Vegas, numa cena que sintetiza toda a jornada do artista.

 

Mas não é possível falar de Elvis sem falar de Austin Butler. Um artista e uma personalidade tão bombástica quanto Elvis traz questões sobre como deve ou não ser sua interpretação por um ator, pois figuras desse porte propiciariam um grave risco de caricatura. Butler caminha numa zona totalmente difusa entre a imitação e a possessão espiritual. Na mesma linha de Ana de Armas e sua Marilyn em Blonde, Butler busca os mais ínfimos detalhes do timbre e da expressão vocal, gestual, expressão corporal e facial, tudo com o perfeito acabamento da maquiagem e figurinos, resultando numa materialização do mito de Elvis na tela, onde a ousadia destemida do artista contrasta com as fragilidades das inseguranças do homem. É muito provável que Luhrmann não conseguisse sustentar toda a pirotecnia de sua linguagem sem um trabalho como o de Butler pois, no fim das contas, com ou sem as “doideiras” do diretor, o público olha para a tela e vê o Elvis. 

 

O Elvis de Luhrmann rejeita completamente o consenso da busca por realismo em qualquer história baseada em fatos e pessoas reais. É muito curioso que, neste mesmo ano, um filme como Tár tenha meticulosamente criado toda uma aura de realismo palpável para dar legitimidade a uma personagem fictícia, enquanto Elvis cria quase que um mundo de fantasia para contar a história de uma pessoa real, pois o realismo que Luhrmann busca é o da música e o da emoção que ela trouxe para o artista e para seus fãs. E também nesse mesmo ano, um filme como Blonde traz uma Marilyn que sofre horrores nas mãos de um diretor que parecia desprezá-la, enquanto Luhrmann trata Elvis tanto como uma divindade quanto como um menino doce e puro. Se for para exagerar, é melhor fazê-lo amando seu protagonista.

 

COTAÇÃO: 


INDICAÇÕES AO OSCAR:

Melhor filme

Ator: Austin Butler

Fotografia: Mandy Walker

Montagem: Matt Villa e Jonathan Redmond

Design de produção: Catherine Martin, Karen Murphy e Beverley Dunn

Som: David Lee, Wayne Pashley, Andy Nelson e Michael Keller

Maquiagem e cabelo: Mark Coulier, Jason Baird e Aldo Signoretti

Figurino: Catherine Martin

 

 

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