quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Os filmes do Oscar: ZONA DE INTERESSE – 5 indicações

Por Ricky Nobre

Antes da primeira imagem, onde a família tranquila se diverte à beira do lago, são dois minutos de escuridão, onde a tenebrosa música de Mica Levi nos leva lenta e inexoravelmente a uma descida aos infernos. Ali, Jonathan Glazer já estabelece o seu principal parâmetro narrativo para Zona de Interesse: o corriqueiro, o cotidiano, o mundano é apresentado pela imagem, enquanto o horror é trazido pelo som. A encantadora residência da família Höss é separada do campo de extermínio de Auschwitz por apenas um muro. Como comandante do campo, Rudolf Höss goza de enorme prestígio e a família vive o que poderia ser considerado o “sonho alemão”. 

 

Com um rigor técnico que poderia ser confundido com o dos tecnocratas que discutem a forma mais eficiente de executar os prisioneiros, Glazer mantém sempre uma imagem limpa, que usa exclusivamente a luz ambiente, sem nenhuma luz adicional, ligeiramente dessaturada e inegociavelmente distante de seus personagens, onde alguns planos médios ocasionais é o mais próximo que a câmera chega dos atores. Com a naturalidade de quem vive um dia a dia tranquilo e seguro, os personagens comentam, entre banalidades, sobre as grandes indústrias que se instalavam nas proximidades, aproveitando-se do trabalho escravo, dos cuidados com o jardim, o calor que estava na estação de trem e das peças de roupa que escolheram dentre os pertences de judeus assassinados. O espectador é constantemente confrontado com os indícios das atrocidades que acontecem a poucos metros dali e o quanto que isso nada significa para os que ali vivem. E essas atrocidades chegam todas pelo som, sejam pelos ocasionais sons de disparos, gritos de desespero, ordens de execução e, mais uma vez, pela música quase demoníaca de Mica Levi, a mais escandalosa ausência na lista de indicados deste Oscar, ainda que boa parte da música composta por Levi tenha sido descartada pelo diretor, que preferiu outros recursos de sound design.

 

O rigor formal de Glazer é tão extremo que acaba gerando imagens que são o total oposto de seu conceito. A partir de uma visão de que o filme precisava ver seus personagens exclusivamente “pelas lentes do século 21” e “sem adornos”, o diretor se manteve radical numa fotografia muito nítida e sem iluminação de cena, apenas com a luz natural e as disponíveis no cenário. Desta forma, a única maneira de captar as cenas da menina escondendo frutas à noite, onde não há fonte de luz, era com uma câmera térmica, que gera uma imagem semelhante à um negativo. Desta forma, ainda que não haja uma luz cinematográfica que levasse a um risco de “embelezamento”, o resultado é o oposto do naturalismo pretendido, com uma imagem extremamente artificial, ainda que intrigante. Por outro lado, essas cenas são justamente daqueles que são talvez os únicos atos de caridade e do que compreendemos com “humanitário”, justificando a natureza radical e única das imagens. Numa possível visão poética em uma obra tão árida, a menina brilha como um anjo.

 

O que mais choca no desenrolar de A Zona de Interesse é percebermos que o genocídio que ali ocorre não é apenas ignorado, ele é naturalizado e, mais ainda, é desejado. Em determinado ponto, o comandante telefona feliz para esposa porque está voltando para casa, mas está preocupado com o imenso desafio logístico que será exterminar os 700 mil judeus que estavam chegando no campo, enquanto a esposa só quer saber de desligar, pois ainda era madrugada. É o extremo da banalidade do mal, pois o mal não é ignorado por conveniência. Ele é naturalizado a tal ponto que parece que não existe. Ele está ali e é natural pois foi desejado e concretizado. Pouco depois, o comandante tenta vomitar e não consegue, como se ele testasse sua capacidade de se enojar, se horrorizar consigo mesmo, mas ele não é capaz. Ele apenas segue descendo as escadas em direção à escuridão. 

 

Tudo isso ocorre, como dito, numa distância constante, que parece vir de um dilema ético que não é novo, mas tornou-se mais discutido recentemente, sobre como retratar no cinema o nazismo e o holocausto, e preocupações com glamourização e espetacularização da tragédia e de seus arquitetos. Esse pavor com a proximidade que o cinema proporciona em questões tão delicadas levou Glazer a manter seus protagonistas a uma distância que considerou segura de qualquer empatia ou identificação e, mais uma vez, deixando as imagens com essa função intelectual, de percepção racional sobre o horror, enquanto a sensação real do horror vive na dimensão sonora. 

 

Há um perigo, porém, nesse distanciamento, que acredito ser o principal problema de Zona de Interesse. Se mantivermos esses “monstros” a uma distância sempre confortável, longe da nossa própria humanidade que consideramos tão inquestionável, continuamos com a perigosa noção de que “eles” não fazem parte de nós. Da Humanidade. A ascensão da extrema direita em todo o mundo deixou bem claro o quão próximos de nós eles estão. Eles são nossos colegas de trabalho. São os pais dos colegas de escola de nossos filhos. São nossos cunhados, nossos primos, nossos pais. São nossos amigos de infância que, num fatídico dia, não reconhecemos mais. Os “monstros” não estão longe. Estão aqui, conosco. Eles são “a Humanidade” tanto quanto nós. E essa distância, que parece tão correta, respeitosa e segura, pode acabar nos fazendo esquecer que esse Mal tão banal mora do nosso lado e pode nos atacar no início de outra longa noite.

COTAÇÃO:



INDICAÇÕES AO OSCAR:

Melhor filme

Melhor filme internacional

Diretor: Jonathan Glazer

Roteiro adaptado: Jonathan Glazer baseado no livro de Martin Amis

Som: Johnnie Burn e Tarn Willers

 

ZONA DE INTERESSE (The Zone of Interest, Reino Unido – 2023)

Com: Christian Friedel, Sandra Hüller, Julia Polaczek, Imogen Kogge, Lilli Falk, Nele Ahrensmeier, Luis Noah Witte e Johann Karthaus

Direção: Jonathan Glazer

Fotografia: Lukasz Zal

Montagem: Paul Watts

Música: Mica Levi

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