sábado, 17 de fevereiro de 2024

Os filmes do Oscar: A SOCIEDADE DA NEVE – 2 indicações

 Por Ricky Nobre

Provavelmente o acidente aéreo mais conhecido no mundo, a queda do avião que levava um time de rúgbi uruguaio e alguns parentes e amigos nos Andes já foi tema de duas produções: o mexicano Os Sobreviventes dos Andes (1976) e o estadunidense Vivos! (1993). Enquanto cada um desses filmes apresentava um elenco natural de seu próprio país (o que era mais estranho no caso do segundo), esta produção espanhola aposta em um elenco totalmente latino americano, especialmente de uruguaios e argentinos. O diretor J.A. Bayona já havia apostado em um elenco hollywoodiano para narrar um evento acontecido a uma família espanhola em O Impossível, para poder garantir um bom orçamento em um filme tão complicado. Mas A Sociedade da Neve já existe em uma época de grande investimento público por parte do governo espanhol para o audiovisual, possibilitando uma maior integridade artística em uma produção que é tecnicamente impecável.

 

O Bayona do drama sobre a família que enfrentou um tsunami é perfeitamente reconhecível em A Sociedade da Neve, a partir da forma como ele contrapõe o irrefreável e avassalador poder da natureza ao espírito e capacidade de resistência humanas. Se a força das águas segue seu curso de forma implacável em O Impossível, dando aos personagens a sensação de absoluta perda de controle, todo o entorno dos personagens perdidos nos Andes se constitui em uma ameaça constante em diversos âmbitos, seja lento e crescente, como a fome, o frio e a doença, seja esmagador, com as tempestades, avalanche ou o próprio acidente (um dos momentos mais assombrosos do filme). O diretor insere o espectador no drama dos personagens ao não ceder à sedução da construção clássica do suspense. Os perigos, principalmente os súbitos, não se anunciam de antemão, não para o espectador, nos fazendo temer pelos personagens por algo que eles ainda não sabem. Num trabalho de som extraordinário, esses perigos se anunciam momentos antes de atacarem, com ruídos desconhecidos, mas cujo perigo torna-se evidente apenas no último segundo. O público só sabe o que os personagens sabem, trazendo-o para bem perto da realidade da experiência dos sobreviventes. O impacto e o choque aqui não são recursos mundanos, baratos, mas que trazem o público para perto dos personagens e daquele ambiente, trazendo até nós um horror contra o qual é impossível reagir imediatamente. A reação vem da resiliência e é coletiva.

O título que vem do livro escrito por um dos sobreviventes já nos explica como aquele grupo de pessoas sobreviveu em condições impossíveis, onde problemas, planos e ações eram discutidas por todos e as tarefas eram distribuídas de acordo com a capacidade de cada um, ainda que essas capacidades sejam impiedosamente testadas todos os dias, levando todos a extremos que jamais imaginaram serem capazes. O impensável na primeira semana se torna algo corriqueiro 40, 50 dias depois. O excesso de zelo da direção ao esconder imagens chocantes de canibalismo (50 anos depois, todos já sabem porque a história ficou tão famosa) se justifica no momento em que, perto do fim da carne disponível, restos são tirados dos ossos expostos à frente de todos, marcando a passagem do choque inicial, onde todos têm dificuldades em lidar com o que precisam fazer, para um momento que sedimenta a ruína das convenções sociais que não se aplicam a circunstâncias extremas. O que sobrevive e permanece o tempo todo é um comprometimento coletivo com a sobrevivência, algo que o filme celebra ao sempre deixar clara a contribuição de todos, especialmente dos que não resistiram até o fim.

 

Se essa abordagem gera algum problema é justamente pela grande quantidade de personagens em uma encenação que mostra a maioria deles interagindo ao mesmo tempo, com poucos destaques individuais, o que dificulta que rostos, nomes e personalidades se fixem na cabeça do espectador. A montagem procura, em alguns momentos, relacionar alguns com suas figuras no passado, mas isso é feito bem pontualmente. 

 

A Sociedade da Neve retrata esse caso que chocou o mundo sob um ponto de vista muito humano, uma vez que percebemos os personagens que se agarram não apenas à própria sobrevivência, mas à sua humanidade. Se eles são forçados a fazerem o impensável para sobreviverem, o que é, em boa parte do tempo, um imenso conflito de consciência para todos, é tocante como, ao se prepararem para o resgate, os sobreviventes que restaram de todo aquele martírio tentam se arrumar, ajeitam as roupas, os cabelos que, de tão imundos, quebram os pentes, ajeitam nas malas alguns pertences dos amigos que se foram, como que um pronunciamento, uma afirmação de que estão vivos. São pessoas, seres humanos. E estão vivos.

 COTAÇÃO:

 


INDICAÇÕES AO OSCAR:

Melhor filme internacional

Maquiagem: Ana López-Puigcerver, David Martí e Montse Ribé

 

A SOCIEDADE DA NEVE (La Sociedad De La Nieve, Espanha – 2023)

Com: Enzo Vogrincic, Agustín Pardella, Matías Recalt, Esteban Bigliardi, Diego Vegezzi, Rafael Federman e Blas Polidori

Direção: J.A. Bayona

Roteiro: J.A. Bayona, Bernat Vilaplana, Jaime Marques e Nicolás Casariego, baseado no livro de Pablo Vierci

Fotografia: Pedro Luque

Montagem: Andrés Gil e Jaume Martí

Música: Michael Giacchino

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