terça-feira, 20 de junho de 2017

A GAROTA OCIDENTAL - ENTRE O CORAÇÃO E A TRADIÇÃO: sobre o que é ser mulher no islamismo e no mundo.


Por Ricky Nobre


Falar sobre islamismo no mundo atual já é um ninho de vespas. Quando é colocada a questão da mulher islâmica na equação, isso se eleva a uma complexidade que não cabe nas simplistas discussões de internet repletas da achismos. O que há de brilhante e indispensável em Garota Ocidental - Entre O Coração e A Tradição (como é infeliz esse subtítulo brasileiro...) é a forma como o roteirista e diretor Stephan Streker constrói um painel complexo e preciso da realidade da vida de famílias de religião muçulmana na Europa, em especial a realidade feminina nesse contexto. E isso de forma simples, fluida, sem arroubos de pretensão, porém, não menos dramática.

 

Zahra é uma jovem de 18 anos, de família paquistanesa que mora na França. Grávida do namorado, pretende fazer um aborto, sob a aprovação da família, que se coloca como muito mais flexível nos costumes do que seus compatriotas. Zahra, porém, tem sérias dúvidas sobre se deve ou não ir adiante, ainda que o namorado não queira de forma alguma assumir o filho caso ela o tenha. Zahra vai a clínica, mas desiste na última hora, não avisando, contudo, a família. Logo em seguida, os pais decidem que ela precisa se casar com um jovem paquistanês, e apresenta três pretendentes a ela, deixando claro que estão sendo muito “modernos” por permitirem que ela escolha. Totalmente avessa à ideia de casamento, a jovem entra em colisão com a família e as reais diferenças entre a cultura paquistanesa e os valores e anseios da moça, criada inserida na cultura e realidade francesas, vêm à tona.

 

Garota Ocidental é repleto de pequenos detalhes que compõem um mosaico da realidade islâmica na Europa. A escolha de uma família de costumes mais “abertos” é essencial não só para desconstruir certos clichês e preconceitos, quanto para evidenciar choques culturais, que se intensificam, mesmo numa família de costumes menos rígidos. Os pais e o irmão compreendem Zahra quanto à perda da virgindade e a apoiam na questão do aborto. Mas, para eles, ter uma filha que permaneça solteira após os 18 anos é inconcebível. Talvez a decisão mais importantes de Streker ao escrever foi colocar todas as discussões e conflitos como questões culturais, sem que a questão religiosa assuma qualquer protagonismo. De fato, a própria Zahra é vista rezando constantemente e seus conflitos com o aborto têm muito a ver com sua preocupação com a alma do feto, e acabamos tento a impressão de que ela é a pessoa mais religiosa do filme, ao mesmo tempo que é a que mais deseja ser livre. Parece ser a intenção de Streker propor que o grande choque entre o mundo islâmico com o ocidente não é de natureza religiosa, mas cultural, afastando o conceito de que o islamismo é uma religião que se impõe aos costumes de maneira uniforme. 


É muito enriquecedora para o filme a forma como os personagens são construídos e se apresentam. O sofrimento profundo e real dos pais de Zahra com sua recusa ao casamento entra em colisão com prováveis preconceitos do público. Todos os envolvidos sofrem. Ainda assim, o filme faz questão de deixar claro que é nas mulheres que recai o peso das injustiças. 

 

No fim, a indignação com a injustiça é o principal ponto de ligação do drama de Zahra com o público ocidental. Em determinada cena, conversando com a irmã mais velha, Zahra se lamenta com tudo o que ela passa “não é justo”. “É claro que não é justo”, responde ela. “Somos mulheres. O que você esperava?”. O destino de Zahra sugere que, talvez, o drama, não apenas nas muçulmanas, mas de todas as mulheres do mundo não é assim tão diferente. 

 

NOCES, 2016

Direção e roteiro: Stephan Streker

Com: Lina El Arabi, Sébastien Houbani, Babak Karimi, Nina Kulkarni, Olivier Gourmet e Alice de Lencquesaing.

Fotografia: Grimm Vandekerckhove

Montagem: Jerome Guiot e Mathilde Muyard

COTAÇÃO: 

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