Por Ricky Nobre
Falar sobre islamismo no mundo atual já é um ninho de vespas.
Quando é colocada a questão da mulher islâmica na equação, isso se eleva a uma complexidade
que não cabe nas simplistas discussões de internet repletas da achismos. O que
há de brilhante e indispensável em Garota Ocidental - Entre O Coração e A Tradição (como é infeliz esse subtítulo brasileiro...) é a forma como o roteirista
e diretor Stephan Streker constrói um painel complexo e preciso da realidade da
vida de famílias de religião muçulmana na Europa, em especial a realidade
feminina nesse contexto. E isso de forma simples, fluida, sem arroubos de
pretensão, porém, não menos dramática.
Zahra é uma jovem de 18 anos, de família paquistanesa que
mora na França. Grávida do namorado, pretende fazer um aborto, sob a aprovação
da família, que se coloca como muito mais flexível nos costumes do que seus
compatriotas. Zahra, porém, tem sérias dúvidas sobre se deve ou não ir adiante,
ainda que o namorado não queira de forma alguma assumir o filho caso ela o
tenha. Zahra vai a clínica, mas desiste na última hora, não avisando, contudo,
a família. Logo em seguida, os pais decidem que ela precisa se casar com um
jovem paquistanês, e apresenta três pretendentes a ela, deixando claro que
estão sendo muito “modernos” por permitirem que ela escolha. Totalmente avessa
à ideia de casamento, a jovem entra em colisão com a família e as reais
diferenças entre a cultura paquistanesa e os valores e anseios da moça, criada
inserida na cultura e realidade francesas, vêm à tona.
Garota Ocidental é repleto de pequenos detalhes que compõem um
mosaico da realidade islâmica na Europa. A escolha de uma família de costumes
mais “abertos” é essencial não só para desconstruir certos clichês e preconceitos,
quanto para evidenciar choques culturais, que se intensificam, mesmo numa
família de costumes menos rígidos. Os pais e o irmão compreendem Zahra quanto à
perda da virgindade e a apoiam na questão do aborto. Mas, para eles, ter uma
filha que permaneça solteira após os 18 anos é inconcebível. Talvez a decisão
mais importantes de Streker ao escrever foi colocar todas as discussões e conflitos
como questões culturais, sem que a questão religiosa assuma qualquer
protagonismo. De fato, a própria Zahra é vista rezando constantemente e seus
conflitos com o aborto têm muito a ver com sua preocupação com a alma do feto,
e acabamos tento a impressão de que ela é a pessoa mais religiosa do filme, ao
mesmo tempo que é a que mais deseja ser livre. Parece ser a intenção de Streker
propor que o grande choque entre o mundo islâmico com o ocidente não é de natureza
religiosa, mas cultural, afastando o conceito de que o islamismo é uma religião
que se impõe aos costumes de maneira uniforme.
É muito enriquecedora para o
filme a forma como os personagens são construídos e se apresentam. O sofrimento
profundo e real dos pais de Zahra com sua recusa ao casamento entra em colisão
com prováveis preconceitos do público. Todos os envolvidos sofrem. Ainda assim,
o filme faz questão de deixar claro que é nas mulheres que recai o peso das injustiças.
No fim, a indignação com a injustiça é o principal ponto de
ligação do drama de Zahra com o público ocidental. Em determinada cena, conversando
com a irmã mais velha, Zahra se lamenta com tudo o que ela passa “não é justo”.
“É claro que não é justo”, responde ela. “Somos mulheres. O que você esperava?”.
O destino de Zahra sugere que, talvez, o drama, não apenas nas muçulmanas, mas
de todas as mulheres do mundo não é assim tão diferente.
NOCES, 2016
Direção e roteiro: Stephan Streker
Com: Lina El Arabi, Sébastien Houbani, Babak Karimi, Nina
Kulkarni, Olivier Gourmet e Alice de Lencquesaing.
Fotografia: Grimm Vandekerckhove
Montagem: Jerome Guiot e Mathilde Muyard
COTAÇÃO:
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