Por Ricky Nobre
A obsessão do cinema (não apenas hollywoodiano) pela Segunda
Guerra Mundial gerou incontáveis filmes sobre o assunto, nas mais variadas
abordagens, pontos de vista, aspectos, detalhes e histórias. Mas a Primeira
Guerra é assunto raro e seu filme mais significativo talvez ainda seja Nada de
Novo no Front, realizado a nada menos que 90 anos. O novo filme de Sam Mendes,
que é um dos favoritos para este Oscar, não explora a política, as estratégias,
nem os grandes fatos históricos ligados ao conflito que durou de 1914 a 1918. Seu
foco é na jornada de dois cabos do exército britânico que precisam atravessar o
território inimigo numa missão suicida, com o objetivo de impedir um ataque que
pode resultar no massacre de 1600 soldados.
O grande triunfo cinematográfico de 1917, que é também seu
principal instrumento de marketing, é sua proposta estética e narrativa
extremamente ambiciosa: sua apresentação em dois únicos e enormes
planos-sequência. Tecnicamente, isso foi conquistado graças a nada menos que 6
meses de ensaios, tanto com atores, não apenas para que todas as marcações
estivessem exatas, mas também para que a produção soubesse exatamente qual a
extensão dos trajetos percorridos para só então construir os cenários
complexos, principalmente as trincheiras, que deveriam ter as dimensões exatas;
mas também com pequenas maquetes dos cenários para que a equipe pudesse prever
as variações de luz e planejar os movimentos de câmera. A partir daí, trechos
curtos de até 39 segundos, até longos como até 8 minutos contínuos foram
costurados com transições digitais que escondiam com perfeição todas as
emendas, dando a sensação perfeita de uma única tomada.
Mais do que um desafio técnico, essa escolha nos coloca
junto com os dois protagonistas numa jornada verdadeiramente assustadora. Enquanto
a câmera se move junto com os dois, vamos descobrindo o terreno junto com eles,
as surpresas, os obstáculos, as crateras, os cadáveres, as armadilhas, os
aliados e os inimigos. Tudo vai se revelando para nós ao mesmo tempo que para
eles, e a ausência de corte (no sentido clássico) dá a perfeita sensação de
tempo real. A urgência da missão, o tempo que transcorre, os perigos, as
tragédias, o desespero e, acima de tudo, a absoluta exaustão são sentidas pelo
público com exatidão.
Na jornada, os protagonistas vão viajando pela insanidade da
guerra, onde boas ações são muitas vezes severamente punidas, mas onde, ainda
assim, há espaço para empatia, altruísmo, ternura e heroísmo. O senso de dever,
a promessa feita, são combustíveis que levam ao limite da resistência humana. Mendes
baseou o roteiro, que é o primeiro que ele próprio assina, nas histórias
contadas por seu avô, que foi combatente e entrou no conflito com meros 17
anos. As histórias dele mesmo e de diversos companheiros foram costuradas,
dando origem à aventura dos protagonistas.
Alguns detalhes podem não funcionar à perfeição ou deixar
uma impressão não tão boa, dependendo de quem vê. A câmera é extremamente
inteligente ao se movimentar, hora por trás, em volta, deslizando suavemente ao
lado ou por cima dos personagens. Mas trechos mais longos em que a câmera segue
os atores por trás pode lembrar excessivamente vídeo games de guerra em
primeira pessoa. Por vezes, a forma como a câmera precisa captar não só a ação
mas todo o entorno, dando conta de muita informação, pode acabar deixando-a excessivamente
distante dos rostos dos atores, diminuindo nossa proximidade emocional com
eles, ainda que permaneçamos imersos na grandiosidade e loucura do ambiente.
Alguns desses espaços emocionais deixados pela distância dos
atores são preenchidos pela música de Thomas Newman, colaborador de Mendes
durante toda sua carreira. A partitura de Newman vai desde a música ambiente
mais plana, padrão e tediosa até as composições mais emocionantes, seja elas
delicadas ou grandiosas. Em alguns momentos, uma instrumentação mais moderna
pode tirar um pouco da imersão na época em que a ação se passa, dependendo da
sensibilidade do espectador. Mesmo assim, é mais um belo trabalho de uma longa
parceria.
1917 é um feito cinematográfico absolutamente triunfante, um
desafio técnico aparentemente impossível, realizado com grande sensibilidade
artística. É ainda um monumento ao talento de Roger Deakins, talvez o melhor
fotógrafo de cinema vivo, que é o principal responsável por tornar possível o
delírio imaginado por Sam Mendes. Muitos acreditam que o filme todo concebido
como “Oscar bait”, e talvez realmente seja. Mas se ele foi feito como isca de
Oscar, ainda sim é uma obra sólida e impressionante que já está no rol dos
grandes filmes de guerra já feitos.
COTAÇÃO:
INDICAÇÕES AO OSCAR:
Melhor filme:
Direção: Sam Mendes
Roteiro original: Sam Mendes e Krysty Wilson-Cairns
Fotografia: Roger Deakins
Música original: Thomas Newman
Edição de som: Oliver Tarney e Rachael Tate
Mixagem de som: Mark Taylor e Stuart Wilson
Direção de arte: Dennis Gassner e Lee Sandales
Maquiagem: Naomi Donne, Tristan Versluis e Rebecca Cole
Efeitos visuais: Guillaume Rocheron, Greg Butler e Dominic
Tuohy
1917 (2019)
Com: Dean-Charles
Chapman, George MacKay, Colin Firth, Mark Strong, Claire Duburcq e Benedict
Cumberbatch
Direção: Sam Mendes
Roteiro: Sam Mendes e Krysty Wilson-Cairns
Fotografia: Roger Deakins
Montagem: Lee Smith
Música: Thomas Newman
Design de produção: Dennis Gassner
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