sábado, 1 de fevereiro de 2020

Os filmes do Oscar: CORINGA (11 indicações)

Por Ricky Nobre


O mal que nasce do caos e do abandono

Quando a DC/Warner falhou miseravelmente em desenvolver um universo compartilhado do mesmo porte do Marvel Studios, o anúncio de um filme solo do Coringa, totalmente diverso do interpretado por Jared Leto, soou como algo entre o desespero e a total ausência de rumo. Apesar de, no universo dos quadrinhos, edições especiais com realidades alternativas ser algo comum, a introdução desse conceito aqui soou estranha num ambiente hollywoodiano onde a Marvel produziu 22 filmes que fazem parte de uma única história. O desafio do projeto, porém, era maior: seria um filme de origem sobre um personagem cujo passado já foi contado diversas vezes nos quadrinhos de formas totalmente diferentes, sendo essas incertas origens múltiplas parte integrante da própria característica caótica do Coringa. Além disso, seria o primeiro filme R-rated (classificação 17 anos) dentro do universo dos principais personagens da DC. Após o fiasco de Liga da Justiça, o projeto foi aprovado com meros 55 milhões de dólares de orçamento. Era uma aposta totalmente nova. 

 

Antes de estrear mundialmente, o filme já provocou furacões por onde passou. Aplaudido de pé por 8 minutos em Veneza de onde saiu com o Leão de Ouro de melhor filme, feito inédito para esse gênero. Boa parte da crítica apontou uma acentuada possibilidade de turbilhão político no contexto atual, e alguns denunciaram o que seria a glamorização da figura do homem branco violento e tóxico. O diretor Todd Phillips deixou expressamente claro em entrevistas que Coringa não é um filme político. E, talvez, essa era sua intenção ao escrevê-lo e dirigi-lo. Contudo, ao construir com absoluta maestria, ao lado do gênio Joaquim Phoenix, o nascimento do mais famoso vilão dos quadrinhos desde sua base, Phillips fez um filme que é político do primeiro ao último frame. E mais que isso: um filme trágico, verdadeiramente sombrio, desesperançado e, mais do que tudo, provocador e incendiário como não se via desde Clube da Luta, há 20 anos. 

 

No processo de narrar a transformação do pacato e frágil Arthur Fleck no perversamente insano Coringa, Phillips traz uma paisagem de decadência, desilusão e desespero urbanos, numa Gotham que falhou como sociedade em todos os sentidos. Cuidando sozinho da mãe, Arthur sonha em ser comediante enquanto trabalha numa agência de palhaços, sofrendo humilhações e passando despercebido pela vida, enquanto luta contra os sintomas dos diversos distúrbios mentais que o afligem, ainda que o acompanhamento psicológico e os sete remédios controlados que recebe lhe deem algum equilíbrio, mesmo que tênue. 

 

Talvez o mais fascinante no filme é como o personagem é desenvolvido num ritmo muito lento porém perfeitamente constante. Ele evolui lenta e suavemente, de forma quase imperceptível, porém, a cada cena, existe algo a mais ali. Quando o Coringa finalmente surge, isso não causa estranheza alguma, ainda que, se lembrarmos do Arthur do início do filme, pareça uma pessoa completamente diferente. Tudo é perfeitamente orgânico e o ocaso de Arthur e o nascimento do Coringa são indissociáveis da própria cidade de Gotham. Ainda que muitas críticas se façam hoje em como o cinema dá a portadores de doenças mentais o destino quase que inexorável de vilões psicopatas, podemos dizer que aqui as questão da doença mental é muito bem trabalhada. E, a partir daí, podemos tecer algumas considerações sobre as maiores críticas que o filme tem recebido, no que se refere ao personagem se tornar um símbolo glamourizado de grupos violentos específicos. 

 

Tentando não cair em spoilers, é seguro afirmar que o Coringa é essencialmente um filho de Gotham. Arthur é humilhado e invisibilizado por sua condição de doente mental e de trabalhador que sobrevive parcamente de sub empregos. O momento em que o programa social que fornece apoio e remédios a Arthur é cortado pelo governo é um dos mais precisos símbolos que o filme oferece das consequências do abandono social perpetrado por maus governos, cujas vítimas são justamente os mais vulneráveis. 

 

Não é tarefa fácil separar todas as camadas sociais e psicológicas do filme e do personagem, mas esse é o nível de complexidade atingido por Phillips, cuja carreira consistia exclusivamente de comédias, principalmente a trilogia de Se Beber Não Case, o que o torna um feito verdadeiramente surpreendente. Como aliado, Phillips tem uma performance histórica de Phoenix, que desenvolveu um trabalho de expressão corporal que é um espetáculo por si só. Todo o filme é contado a partir do ponto de vista de Arthur, o que intensifica a identificação do público com os dramas e as motivações do personagem. Porém, quanto mais brutal ele se torna, cresce o conflito do público ao ver atos perversos motivados por sentimentos os quais o filme nos fez compreender perfeitamente. O público é desafiado a não corroborar com os atos de Arthur e da turba que o idolatra, ainda que nos fique claro que tal resultado seja o ápice inevitável da decadência de uma sociedade abandonada. 

 

O que talvez explique que até alguns dos maiores defensores do filme também chegaram a defini-lo como “perigoso” seja o fato de que o triunfo do Coringa não possui contraponto na tela. Nos quadrinhos e em filmes anteriores, o contraponto do Coringa é o Batman. No já citado Clube da Luta, o contraponto da persona Tyler é a persona Jack. Aqui, Phillips deixa exclusivamente para o público a tarefa de criar contraponto ao “mito” Coringa. O certo e o errado se fundem e confundem como acontece em tempos de decadência e desespero sociais. Isso torna a tarefa de não idolatrar o Coringa mais difícil. Porém, desde a primeira cena, Phiilips deixa claro que facilitar não era seu objetivo. Muito pelo contrário.

 

Falando especificamente do universo de quadrinhos, Coringa é seguramente o primeiro filme de universo de super heróis em que absolutamente qualquer coisa que aparece na tela poderia realmente ter acontecido no mundo real, inclusive levando em conta que a narrativa se passa em 1981. O realismo é total, seja ele concreto, tecnológico ou psicológico. Na sua tarefa, Phillips teve o auxílio precioso da montagem de Jeff Groth que constrói o perfeito ritmo do filme, a fotografia de Lawrence Sher, com um impressionante trabalho de cores e uma luz que remete diretamente ao cinema dos anos 70 (Taxi Driver e O Rei da Comédia, ambos de Scorcese, são inspirações poderosas em diversos níveis) e a música da sueca Hildur Guðnadóttir, a perfeita voz da mente de Arthur, num trabalho inspirado como poucos no cinema de hoje. Ainda falando em quadrinhos, é sempre uma aposta perigosa estabelecer qualquer laço prévio entre o Coringa e a família Wayne, e o filme corre esse risco com inteligência. 

 

É importante o público ir preparado para algo inédito nos filmes do gênero: não é um filme de ação, sequer tem uma única cena de ação no filme. Phillips não fez apenas um filme de quadrinhos verdadeiramente sombrio no seu âmago (para muito além das infantilidades pseudo maduras que infestaram tentativas recentes da DC) e completamente realista. Coringa é um estudo de personagem sublime, uma tragédia humana devastadora e uma visão política e social incendiária. Um filme que será discutido por anos pelo público ao qual foi delegado o veredito do palhaço do crime, o mestre do caos. Mas se Todd Phillips se permite algum comentário sobre em qual lado da balança pesam os atos do Coringa, é bom lembrar que o toque final do nascimento do vilão, nos últimos minutos, é desenhado com sangue.

 COTAÇÃO:



INDICAÇÕES AO OSCAR:
Melhor filme
diretor: Todd Phillips
Ator: Joaquin Phoenix
Roteiro adaptado: Todd Phillips e Scott Silver
Fotografia: Lawrence Sher
Montagem: Jeff Groth
Música original: Hildur Guðnadóttir
Maquiagem e cabelos: Nicki Ledermann e Kay GEorgiu
Figurinos: Mark Bridges
Edição de som: Alan Robert Murray
Montagem de som: Tom Ozanich, Dean Zupancic e Tod Maitland

CORINGA (Joker, 2019)

Com: Joaquin Phoenix, Robert De Niro, Zazie Beetz, Frances Conroy e Brett Cullen.

Direção: Todd Phillips

Roteiro: Todd Phillips e Scott Silver

Fotografia: Lawrence Sher

Montagem: Jeff Groth

Música: Hildur Guðnadóttir

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