sábado, 10 de abril de 2021

Os filmes do Oscar: BELA VINGANÇA – 5 indicações

Por Ricky Nobre


ATENÇÃO: Esse texto NÃO contém spoilers diretos do filme. Mas esta análise pode alterar a expectativa e a percepção da obra.

Talvez já seja um spoiler por si só dizer que Bela Vingança não é o que você espera. A estreia na direção da atriz e roteirista Emerald Fennell se mostra uma obra divisiva desde sua première no Festival de Sundance. Existem diversos motivos para amar e odiar o filme, alguns justificáveis, outros não. Nele, Cassandra é ex estudante de medicina que trabalha num café e passa seus fins de semana em clubes se fingindo de bêbada à beira da inconsciência, onde sempre (SEMPRE!) algum homem a leva pra casa com más intenções, até que ela se revela sóbria, para o susto do potencial estuprador. Em seu caderno de notas, o registro das centenas de vezes em que ela repetiu essa armadilha. Esta vida sem outro objetivo esconde um passado traumático do qual ela não consegue se livrar.

 

Fennell flerta com gêneros estabelecidos e suas estéticas, armando situações que não se desenvolvem ou concluem como o público espera. Inicialmente, é clara a promessa de um típico filme B de vingança estilo A Vingança de Jennifer, clássico exploitation de 1978 que inaugurou um subgênero de terror, onde um estupro violento e chocante é necessariamente seguido de uma vingança sanguinária por parte da vítima. O título brasileiro, em sua obviedade, acaba por reforçar essa expectativa, quando seria bem melhor traduzi-lo mais literalmente como “Uma Jovem Promissora”. A própria sequência inicial de créditos, onde surge o título do filme, faz referência ao design da época, no melhor estilo Tarantino. A música original do novato Anthony Willis, com uma orquestra diminuta, referencia os thrillers da época, e prenuncia constantemente um banho de sangue que o público permanece aguardando, agindo, por várias vezes, em contraste com todos os demais elementos do filme, seja a fotografia, as interpretações ou o tom cômico do roteiro.

 

Aliás, o humor do filme é também um ponto polêmico, pois pode ser considerado de mau gosto qualquer tom cômico num filme que trata especificamente sobre abuso sexual. Aqui, contudo, o abuso jamais é o assunto do humor, mas diversos outros elementos que cercam a vida de Cassandra. Sua trajetória vai de isolamento do mundo, o planejamento e execução de uma vingança mais focada em pessoas específicas, passando por um momento de aposta numa reconexão com a vida e com o amor, fase onde o filme brinca com clichês de comédia romântica. Se a certa altura, determinada revelação se mostra totalmente previsível, o que se segue não poderia ser mais surpreendente, para bem e para mal.

 

O filme tem uma estética muito elaborada, com excelente fotografia e uma paleta de cores incrível. Cada elemento de cena é cuidadoso (a “auréola” de santa na parede é um dos melhores), assim como o uso, além da música original, de músicas pop originais e versões orquestradas. Esses elementos, somados à já citada constante sugestão de um thriller violento, os elementos cômicos e diversas subversões de expectativas, deixam o filme sempre com vários pés em vários gêneros simultaneamente, tornando a obra uma mistura bizarra de fábula colorida e bem-humorada com realismo cruel e esmagador. 

 

Fannel parece saber exatamente o que quer com o filme e talvez não seja desleixo seu que alguns pontos pareçam mal resolvidos. Se uma algema cede sem explicação alguma ou se nenhum das centenas de homens que Cassandra enganou se fingindo de vulnerável reagiu de forma perigosa (por mais que esse perfil de abusador seja majoritariamente composto por covardes) ou mesmo a sincronia mágica dos últimos eventos do desfecho, isso serve para que a história siga na direção que ela quer, porém não deixa de ser lamentável que se torça algumas lógicas básicas para que o roteiro chegue em determinado ponto. 

 

Em meio a tudo isso, a cola que mantém o filme íntegro e o público sempre atento em meio a esse caleidoscópio de Fannell é Carey Mulligan, que interpreta Cassandra com uma integridade e coerência impressionantes, num trabalho sutil, sem arroubos, de construção de uma pessoa quebrada, uma jovem promissora presa a uma memória que não consegue superar, desistindo da vida e se submetendo a riscos desnecessários.

 

Fannell faz Cassandra rejeitar a vingança sanguinária (talvez por ser um gênero do cinema de terror criado por homens, onde o sofrimento feminino também era espetáculo) em favor de uma vingança moral, onde não apenas os homens são alvo, mas também as mulheres que, de alguma forma, corroboram com a opressão masculina. Mas, ao mesmo tempo, parece dizer que não há saída para quem escolhe tentar a conscientização em vez da punição e que, quando escolhe a punição física, o contragolpe vem impiedoso. A vingança de Cassandra é amarga e deixa o espectador com uma mistura confusa e perturbadora de sentimentos e ideias. Bela Vingança é um filme perturbador por muitos motivos, certos e errados. Mas é um filme com identidade e um propósito. O tipo de filme que o tempo julga melhor do que as sensações imediatas que provoca.

 

COTAÇÃO:



INDICAÇÕES AO OSCAR:

Melhor filme

Direção: Emerald Fennell

Atriz: Carey Mulligan

Roteiro original: Emerald Fennell

Montagem: Frédéric Thoraval

 

BELA VINGANÇA (Promising Young Woman, Reino Unido / EUA – 2020)

Com: Carey Mulligan, Bo Burnham, Jennifer Coolidge, Laverne Cox, Alison Brie, Connie Britton e Alfred Molina

Direção e roteiro: Emerald Fennell

Fotografia: Benjamin Kracun

Montagem: Frédéric Thoraval

Música: Anthony Willis

Design de produção: Michael Perry

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