quarta-feira, 7 de abril de 2021

Os filmes do Oscar: ERA UMA VEZ UM SONHO – 2 indicações

Por Ricky Nobre

A adaptação de Era Uma Vez Um Sonho (horrendo título nacional herdado da nossa edição do livro) chega com uma imensa responsabilidade e uma tarefa delicada: transpor para cinema o best-seller polêmico de J.D. Vance que, a partir de suas experiências pessoais e de sua família, traça um raio X da cultura do povo do interior dos EUA, especialmente da região dos Alapalaches e Ozarks. Junto com o sucesso, vieram muitas discussões sobre a forma com que o autor retrata seu povo e sua crise cultural e social nas últimas décadas. O livro chegou a ser considerado um mapa para entender a parcela dos eleitores responsáveis pela eleição de Trump, justamente no ano de 2016 em que o livro foi lançado.

 

A principal dúvida era como uma adaptação hollywoodiana iria lidar com todo o conteúdo político, social e cultural do livro, uma vez que muitas das críticas que o livro recebeu foi da forma como o autor acreditava estar traçando um retrato completo e incontestável de seu povo de origem, tendo, inclusive, diversos trabalhos acadêmicos produzidos que contestavam várias de suas afirmações. 

 

Entra em cena o diretor Ron Howard, um cineasta que personifica exatamente o tipo de cinema que a Academia sempre pareceu ter tanto apreço: agradável, correto, tecnicamente apurado e raso. A solução de Howard para toda a turbulência sociopolítica do livro foi simplesmente ignorá-la. Howard preferiu investir no melodrama, talvez numa tentativa de universalizar a história familiar, como uma narrativa dramática que poderia acontecer em qualquer lugar.

 

O filme segue o relato de JD em duas fases: sua adolescência em Ohio em fins dos anos 90 e sua vida em Connecticut em 2011. Em meio a uma entrevista de emprego que pode mudar sua vida, ele descobre que sua mãe sofreu uma overdose e precisa voltar para acudi-la. A narrativa em flashback vai construindo a vida familiar de JD, os problemas com a mãe viciada e de vida desregrada, sua fase delinquente e o papel da avó em sua mudança de vida. 

 

É curioso perceber que as questões que em o livro se aprofunda e que o tornaram tão relevante, e que o filme evita como uma praga, são tão essenciais na história do protagonista que se fazem presentes mesmo assim. O custo da educação superior, a ausência de um sistema de saúde pública, o preconceito da elite com a população pobre, a marginalização de dependentes químicos e portadores de transtornos mentais, a falta de perspectiva de vida da parcela mais pobre e a evasão para grandes centros e o ingresso nas Forças Armadas como únicas formas de ascensão social. Tudo isso está lá. São questões que movem o protagonista, são seus obstáculos, sua realidade e os parâmetros a partir dos quais ele toma suas decisões. Mas não há qualquer espécie de discussão ou aprofundamento desses temas. A personagem da mãe, além da dependência, sofre claramente de algum tipo de transtorno mental e isso é sequer mencionado. Mal temos a noção de quais os posicionamentos dos personagens quanto a essas questões, que dirá de seu diretor e roteiristas. Howard poderia ter posto as visões do autor original (que, afinal, é o protagonista) em perspectiva, poderia dar sua própria visão dessas questões, ou mesmo apresentar visões opostas para o público absorver e refletir. Mas ele preferiu o drama familiar puro e simples.

 

Nessa abordagem, principalmente se levarmos em conta o público estrangeiro e completamente alheio às questões abordadas no livro, o filme funciona bem para quem busca um simples drama familiar. Nesse tipo de filme as interpretações são essenciais e Howard se garantiu muitíssimo bem ao trazer Amy Adams e Glenn Close para o projeto, onde o jovem Owen Asztalos também se sai muito bem. Esse elenco meio que carrega sozinho o peso de manter o público engajado na história. O filme até que vai muito bem até se tornar evidente que a personagem da mãe não vai sair do retrato inicial de dependente problemática, a irmã ser uma mera figurante, a avó ter uma personalidade extremada e que, apesar de ser um pouco melhor escrita, falta maior profundidade. Como drama despretensioso funciona, e o elenco engrandece muito a experiência, mas em nada se assemelha à pretensão do material de origem. A “elegia caipira” aqui não se concretiza e o espectador que não tem intimidade com o universo retratado não se sente verdadeiramente inserido nele. A forma limitada como o roteiro desenvolve os personagens gera lacunas emocionais e intelectuais no filme que o público acaba tendo que preencher por si só, não porque foi uma proposta do diretor de não entregar tudo pronto e mastigado, mas por falhar em apresenta-los de forma mais completa e coesa. Muita atenção e energia foram gastas para tornar os atores o mais semelhantes possível fisicamente com as pessoas reais retratadas. A transformação de Glenn Close chegou a chocar e emocionar JD e seus familiares, tamanha a semelhança com sua avó real. Essa característica acaba sendo um perfeito símbolo de como o filme investe mais na superfície do que no âmago.

 

Ainda assim, tira-se alguma visão de mundo e de vida de sua conclusão, principalmente na escolha final do protagonista de um dilema que paira sobre ele por todo o filme. Por fim, o filme celebra uma espécie de híbrido de individualismo com dedicação familiar, como um pode ser a forma de manter o outro. Era Uma Vez um Sonho reúne as principais características que a Academia tanto gosta, mas acabou por levar apenas duas indicações. Um pouco mais de cuidado conseguiria levar o filme não à altura de todo seu potencial, mas pelo menos ao nível de exigência mínimo da Academia com esse tipo de filme. O sucesso comercial do filme não pode ser mensurado da forma tradicional, da mesma forma que nenhum filme no último ano pode. A crítica surrou esse filme muito mais que o público, que têm deixado comentários mais simpáticos na internet. Na carreira do diretor, é um filme típico. Um filme de Ron Howard não costuma ser ruim. Mas também não costuma ser bom. E esse é simplesmente um filme de Ron Howard.

 

 COTAÇÃO:


 

INDICAÇÕES AO OSCAR:

Atriz coadjuvante: Glenn Close

Cabelo e maquiagem: Eryn Krueger Mekash, Matthew Mungle e Patricia Dehaney

 

ERA UMA VEZ UM SONHO (Hillbilly Elegy – EUA, 2020)

Com: Amy Adams, Glenn Close, Gabriel Basso, Haley Bennett, Freida Pinto, Bo Hopkins e Owen Asztalos

Direção: Ron Howard

Roteiro: Vanessa Taylor, baseado no livro de JD Vance

Fotografia: Maryse Alberti

Montagem: James Wilcox

Música: David Fleming e Hans Zimmer

Design de produção: Molly Hughes

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