Por Ricky Nobre
Em 1971 a renomada crítica cinematográfica Pauline Kael publicou um artigo intitulado Raising Kane, onde defendia a tese de que o roteiro de Cidadão Kane foi escrito exclusivamente por Herman Mankiewicz e, portanto, Orson Welles não merecia nem o crédito de co-roteirista nem o Oscar recebido em 1942. Ainda que muitos colegas de profissão tivessem criticado o conteúdo do artigo, e mais ainda, que o cineasta Peter Bogdanovich tenha desmentido ponto a ponto os argumentos de Kael em um artigo próprio no ano seguinte, a história se espalhou de tal forma que ainda hoje é repetida como verdade. Com uma produção absolutamente impecável, o novo filme de David Fincher Mank falha justamente por se apoiar numa tese já desbancada por documentos arquivados da época, mais precisamente, os sete tratamentos diferentes do roteiro, onde apenas o primeiro é de autoria exclusiva de Mankiewicz. Os seis seguintes são em parceria com Welles.
O roteiro de Mank foi escrito originalmente pelo pai de Fincher na década de 90, e em fins daquela década esteve prestes a ser produzido, mas o estúdio não aprovou a abordagem estética de Fincher, cancelando o projeto. Recentemente, porém, o cineasta recebeu carta branca da Netflix para produzir o filme como quisesse. De fato, toda a estética de Mank é justamente seu maior trunfo. Infelizmente, porém, Fincher se apaixonou pelo roteiro de seu pai, ainda que sua base fosse uma teoria já completamente refutada. O próprio diretor, junto com Eric Roth, revisou o roteiro na tentativa de torna-lo mais condizente com essa realidade, mas o fato é que a base permanece, que é a reivindicação total da autoria do roteiro.
A concepção de Mank é fascinante. Rodado em preto e branco, o filme passou por diversos processamentos na pós-produção para que a imagem captada em digital 8K parecesse ter sido rodada em película do início de 1940. Pequenos riscos e até as tradicionais “marcas de cigarro” que marcavam as trocas de rolo no momento da projeção foram incluídos. Entretanto, muito mais que esses efeitos de pós-produção e a simulação de um estilo antigo, é a própria beleza do trabalho do fotógrafo Erik Messerschmidt que impressiona e dá ao filme o que talvez seja sua principal identidade. O curioso, porém, é a escolha da proporção 2,20:1 para a tela, em vez da 1,33:1 usada na época. Talvez para dar uma sensação de mais espaço e grandiosidade. Mas não deixa de ser estranho, uma vez que tanto trabalho foi despendido para simular uma estética específica.
Da mesma forma, o som, que muitos insistem em afirmar que é mono, é de fato multicanal, principalmente na música. Porém, a maioria dos sons são realmente concentrados no centro da tela, com a ambientação surround tendo apenas um “eco” do filme, simulando a projeção numa grande sala de cinema. Esse eco, curiosamente, é verdadeiramente a gravação e isolamento da reverberação do filme sendo reproduzido numa grande sala, que foi devidamente gravada e remixada de volta no filme. Porém, a principal e mais fascinante característica do som é uma perfeita simulação do timbre e das limitações características da tecnologia da época, trabalho que levou muito mais tempo do que o esperado. O resultado é perfeito, obra do genial engenheiro de som Ren Klyce.
A música de Trent Reznor e Atticus Ross (da banda Nine Inch Nails), é rigorosamente diferente do trabalho eletrônico composto por eles para todos os demais filmes de Fincher a partir de A Rede Social. Aqui, temos um trabalho 100% acústico com composições de jazz e o estilo clássico de scoring hollywoodiano, com suaves toques herrmanianos (Cidadão Kane foi, de fato, o primeiro filme do lendário compositor Bernard Herrmann). Microfones antigos e os mesmos filtros e equalizações criados para a mixagem do filme foram usados para dar a sonoridade de gravação antiga.
Na proporção em que o roteiro trabalha a serviço desta estética retrô, ele funciona muito bem. Os diálogos são espertos, rápidos, recitados pelos atores com os exatos maneirismos das interpretações da Hollywood clássica. Se os atores não soam como pessoas reais falando, é justamente porque muito trabalho e tempo foram despendidos para que fosse exatamente assim. Desta forma, o Mank apresentado pelo ator Gary Oldman segue essa linha de língua ferina e repostas rápidas e precisas, moduladas entre vários graus de embriaguez. A montagem intercala o processo criativo de Mank, que dita o roteiro para sua assistente, preso à cama após um acidente de carro, com memórias da década anterior e seu trabalho entre gigantes da indústria como Louis B. Mayer e Irving Thalberg, e suas lembranças de William Randolph Hearst e a atriz Marion Davies, sua amiga e paixão platônica. Esses flashbacks servem para dar suporte à inspiração de Mank para o roteiro que, mesmo não citando nomes, era baseado na vida do magnata da comunicação Hearst.
Não deixa de ser curioso, de um jeito meio bizarro, que o filme, numa exemplificação do poder de manipulação da mídia controlada por Hearst (em conluio com a MGM), denuncie a propagação de depoimentos falsos em campanhas e cinejornais com o intuito de minar a campanha do candidato democrata à prefeitura de Los Angeles, enquanto o próprio roteiro se baseia numa premissa falsa. O próprio personagem de Hearst foi muito menos explorado do que poderia, sendo ele a peça-chave do roteiro que estava sendo escrito por Mank.
Apesar do brilhantismo técnico e estético e dos excelentes diálogos valorizados pelo ótimo elenco, Mank carece de um brilho além dessas qualidades. Mesmo como uma grande homenagem a Cidadão Kane em particular e à Hollywood clássica em geral, a história contada em si não é particularmente memorável e os flashbacks, ainda que fragmentados, parecem mais interessantes do que o processo de criação de um dos grandes roteiros da história do cinema. Mesmo com problemas de prazo, bloqueios criativos, bebedeiras e enorme pressão, não existe um suspense ou uma maior ou relevante emoção ao vermos Mank lutando para escrever o roteiro.
Ao final, o filme oferece uma interpretação que se assemelha com a realidade, quando Mank entrega um roteiro gigante, onde fica claro que precisará ser reescrito. Mas, logo após, nas últimas cenas, flerta novamente com a teoria de que Welles nada teve a ver com o processo. Não só isso, mas muitas das situações do filme são inventadas ou altamente fantasiadas, fazendo de Mank um filme desaconselhável para quem se interessa em saber de fato como tudo aconteceu. Vale como um espetáculo de amor ao cinema, mas um amor que se atém muito mais à forma. Pois o que falta ao filme é, na verdade, um coração.
COTAÇÃO:
INDICAÇÕES AO OSCAR:
Melhor filme
Direção: David Fincher
Ator: Gary Oldman
Atriz coadjuvante: Amanda Seyfried
Música: Trent Reznor e Atticus Ross
Direção de arte: Donald Graham Burt e Jan Pascale
Fotografia: Erik Messerschmidt
Maquiagem e cabelos: Gigi Williams, Kimberley Spiteri e Colleen LaBaff
Figurino: Trish Summerville
Som: Ren Klyce, Jeremy Molod, David Parker, Nathan Nance e Drew Kunin
MANK (EUA – 2020)
Com: Gary Oldman, Amanda Seyfried, Lily Collins, Arliss Howard, Tuppence Middleton, Tom Burke e Charles Dance.
Direção: David Fincher
Roteiro: Jack Fincher
Fotografia: Erik Messerschmidt
Montagem: Kirk Baxter
Música: Trent Reznor e Atticus Ross
Design de produção: Donald Graham Burt
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