sábado, 24 de abril de 2021

Os filmes do Oscar: A VOZ SUPREMA DO BLUES – 5 indicações


Por Ricky Nobre

O dramaturgo norte americano August Wilson foi o criador do que ficou conhecido como “O Ciclo do Século” ou “O Ciclo de Pittsburgh”, composto por dez peças teatrais, cada uma ambientada em uma década do século XX, retratando a realidade da comunidade negra dos EUA. Em 2016, Denzel Washington produziu, dirigiu e estrelou Um Limite Entre Nós, ambientada nos anos 50. Agora ele volta apenas como produtor trazendo A Voz Suprema do Blues, que se passa na década de 20, como parte de um projeto de filmar todas as dez peças de Wilson.

 

O título original Ma Rainey's Black Bottom se refere a uma das mais de 100 músicas gravadas por Ma Rainey, conhecida como “a mãe do blues”, pelo selo Paramount entre 1923 e 1928. O filme é baseado no fiapo de fatos que se conhece da biografia de Ma Rainey. Mais do que tentar traçar um retrato fiel da história da cantora, o texto procura retratar com fidelidade seu talento, a personalidade bombástica e também a realidade dos artistas negros da época. Desta forma, acompanhamos a narrativa ficcional de um dia de gravação de Ma Rainey e sua banda, em dezembro de 1927, quando ela gravou uma dúzia de músicas, além daquela dá o título. Fora Ma Rainey e o dono da gravadora, todos os demais personagens são ficcionais, e contam a mesma história da protagonista, sob outro ponto de vista.

 

Enquanto ensaiam numa sala fechada, os membros da banda mostram diferentes visões sobre o que é ser negro nos EUA em geral e artistas negros em particular, assim como todo preconceito e violência que sofrem. Músicos de gerações diferentes têm visões que coincidem ou se colidem. O destaque é para o jovem trompetista Levee (Chadwick Boseman, em seu derradeiro papel), um músico de muito talento, muita ambição, pouca paciência e quase nenhum limite. Ele sabe que tem talento, conhece a indústria da música (que crescia), sabe o que faz sucesso, quer impor a si e a suas ideias, pois tem fé em si. Sua agressividade de jovem impaciente, mas também de “fera enjaulada”, colide com a visão de vida e personalidades mais cautelosas de seus colegas músicos mais velhos e experientes. Com terríveis memórias de violência racial vindas da infância, Levee não se conforma com limites, seja uma porta trancada, sejam os injustos limites que lhe são impostos por sua cor. Assim, ele sempre tenta transpor esses limites, seja se engraçando com a namorada de Ma Rainey, seja tentando impor um arranjo diferente do combinado.

 

De forma similar, Ma Rainey, já estabelecida na carreira e um grande sucesso de vendas de discos que transcendeu o sul e dominou o resto do país, vê no valor de sua arte o seu poder de barganha. Ela impõe sua vontade, tem “ataques de diva”, cria dificuldades onde talvez elas não precisassem existir. Mas ela sabe o enorme valor financeiro que ela tem para a gravadora, e que esse é o único valor que o empresário branco vê nela. O que ela quiser exigir, ela exige, e se esse é o único jeito de ter um branco em posição de poder tratando-a com o respeito devido, então assim será. Com narrativas, a maior parte do tempo, separadas, Levee e Ma Rainey dividem a cena e entram em colisão em um tempo reduzido do filme, sendo bem maior os seus desenvolvimentos em separado. 

 

A fraqueza do filme vem da limitada habilidade do diretor George C. Wolfe e do roteirista Ruben Santiago-Hudson em transpor a peça teatral para a tela. Com enorme experiência em teatro e quase nenhuma em cinema, ambos falham em adaptar o tom dos diálogos, das interpretações e do mise-en-scène para a tela. Por mais admirável que seja a performance de Chadwick Boseman, esta é uma bela interpretação para o palco. Todas as cenas e toda a dinâmica entre os músicos são essencialmente teatrais, com longos monólogos e uma dramaticidade que não rende tão bem na tela. O diretor tenta dar vida à câmera, que passeia pelo cenário, fugindo da imobilidade, mas as interpretações são teatro puro. Porém, quando Viola Davis entra... tudo muda como num passe de mágica. Davis pega aquele mesmo texto, com aquela mesma direção e transforma aquilo em cinema como se para isso bastasse respirar. A impressão é de que tudo é feito rigorosamente sem esforço algum. Tamanho é o poder de sua performance que todos os demais atores com os quais divide a cena respondem de forma semelhante, e tudo vira mais cinema. 

 

Por mais que Ma Rainey tenha sido um exemplo pioneiro de artista negra se impondo numa indústria de entretenimento controlada por brancos, ao fim, é impossível tratar de questões deste porte sem uma grande dose de amargura. Na inexperiência, no inconformismo e na frustração de Levee, ele acaba direcionando seu ódio para aquele que menos merecia, enquanto o dono da gravadora segue o padrão, apropriando-se da arte de negros e vendendo-a por brancos para brancos. Ao arrombar a porta, ela leva a lugar nenhum. Uma síntese de dois aspectos da luta de artistas negros para se imporem que poderia ter gerado um belíssimo filme se fosse entregue a artistas que efetivamente dominassem a linguagem do cinema.

 

COTAÇÃO: 


INDICAÇÕES AO OSCAR:

Ator: Chadwick Boseman

Atriz: Viola Davis

Direção de arte: Mark Ricker, Karen O'Hara e Diana Sroughton

Maquiagem e cabelo: Sergio Lopez-Rivera, Mia Neal e Jamika Wilson

Figurino: Ann Roth

 

A VOZ SUPREMA DO BLUES (Ma Rainey's Black Bottom, EUA – 2020)

Com: Viola Davis, Chadwick Boseman, Colman Domingo, Glynn Turman, Michael Potts, Jeremy Shamos e Taylour Paige

Direção: George C. Wolfe

Roteiro: Ruben Santiago-Hudson, baseado na peça de August Wilson

Fotografia: Tobias Schliessler

Montagem: Andrew Mondshein

Música: Branford Marsalis

Design de produção: Mark Ricker

 

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