quinta-feira, 29 de março de 2018

JOGADOR Nº1: a revolução será digital

Por Ricky Nobre


Steven Spielberg inventou o entretenimento hollywoodiano como o conhecemos hoje.  É dele aquele que é considerado o primeiro blockbuster, Tubarão (1975), o primeiro filme a bater a marca de 100 milhões de dólares de arrecadação. Sua contribuição vai bem além de sua obra como diretor e antes dos 40 anos de idade já produzia grandes sucessos, principalmente de ação e aventura de cineastas como Joe Dante, Robert Zemeckis, Barry Levinson e Richard Donner. Suas produções deste período se entranharam de tal forma na cultura pop que são referência até hoje, mesmo para o público mais jovem. Não foi surpresa que quando Ernest Cline lançou seu livro Jogador Nº 1 Spielberg tenha sido uma das principais das, literalmente, centenas de referências à cultura pop que não apenas ilustram mas que se integram profundamente à narrativa. Quando Spielberg iniciou a adaptação do livro para o cinema, foi mais do que “o melhor homem para o trabalho”, mas o fechamento de um círculo perfeito e a suprema auto referência metalinguística.

 

Em 2045 a economia mundial está em frangalhos e a população empobrecida e sem perspectiva vive imersa em um mundo virtual chamado Oasis, onde cada um pode ser e fazer o que quiser, numa das formas mais extremas e completas de escapismo que a tecnologia do entretenimento pode oferecer. As referências pop de Halliday, criador do jogo, que é quase que cultuado como um deus, tornam-se também referências e obsessões dos jogadores, que inundam o mundo virtual de ícones do cinema, animes e games, principalmente mas não restritas aos anos 1980. Quando Halliday morre, é revelado que ele deixou três chaves escondidas no Oasis, e quem encontrar as três se tornará o novo herdeiro da empresa. Com isso, inicia-se uma caçada não apenas entre os jogadores, como o protagonista Wade, mas também de uma mega empresa rival que pretende uma “aquisição hostil”, literalmente, encontrando as chaves. 

 

Da forma como é visto por Spielberg, Jogador Nº1 é uma experiência verdadeiramente deslumbrante! Num ataque desnecessário de modéstia, ele retirou todas as referências a seus próprios filmes, porém as demais são tão numerosas e algumas são tão obscuramente “cult” que seria necessário um exército de Capitães América para “pescar” todas (pelo menos, King Kong é do tempo dele). Muitas dessas referências são verbalizadas, provavelmente para dar uma ajudinha ao público mais casual, mas as que passam rapidamente pela tela são incontáveis principalmente personagens de games. Sendo ele mesmo um “nerd velha guarda”, Spielberg entende o material e seu público e não poupa participações ilustres, seja de personagens, objetos ou filmes inteiros, tornando o filme uma homenagem ao universo pop e nerd sem precedentes. Sendo não apenas fã mas amigo pessoal de Kubrick, é indescritível o quanto ele se diverte recriando cenas de O Iluminado (que rendeu aplausos em “cena aberta”, algo muito raro em cabines de imprensa). O clímax do filme é o mais épico crossover já feito, com centenas de personagens dos mais variados universos.  

 

Estando Spielberg distante do cinema “pipoca” a tantos anos (os últimos foram Indiana Jones em 2008 e Tin Tin em 2011), pode surpreender a alguns como ele mantém o total domínio do filme nas espetaculares cenas de ação. Mas isso é Spielberg sendo o mestre da narrativa que sempre foi. O filme permanece sob seu total controle nos 140 minutos de projeção, numa narrativa fluida, instigante, sem “barrigas” ou “furos”. O visual é espetacular, onde o ambiente 100% em animação digital no universo virtual contrasta com a realidade das favelas pobres e dos escritórios frios filmados em película 35mm. As cenas de ação são impecáveis e lembram o exemplo de George Miller no recente Mad Max. Aos 71 anos (como tinha Miller a dois anos), Spielberg dá uma aula a essa geração que acha que cinema de ação se faz com câmera com parkinson e um corte a cada nanossegundo e não com conhecimento e domínio da linguagem cinematográfica e com sensibilidade artística. Ele guarda hábitos de artesão cinematográfico ao ainda filmar e montar em película, ao mesmo tempo em que domina totalmente as mais novas tecnologias do cinema. Spielberg admitiu ter sido o terceiro filme mais difícil de sua carreira, atrás apenas de Tubarão e O Resgate do Soldado Ryan

 

Uma das poucas ressalvas a serem feitas é em relação aos vilões. Spielberg escolheu trabalhar com vilões mais caricatos e ligeiramente cômicos e, mesmo que o que eles representam seja completamente assustador dentro da história, os personagens não são assustadores por si, e isso acaba fazendo um pouco de falta. O elenco no geral é bom, mas os personagens não são aprofundados, com a exceção dos dois principais e, até certo ponto, de Halliday. Aliás, o ator Mark Rylance parece ser a mais nova paixão do diretor. De espião russo, a gigante amigo e gênio da informática, Rylance parece ser capaz de fazer qualquer coisa. Outra ressalva é quanto à narração do protagonista, principalmente na primeira meia hora de filme. Com muita coisa a ser explicada, e muita história a ser contada, muito da história pregressa vai sendo explicada por narração para acelerar as apresentações da história e facilitar o entendimento do público quanto à trama, o que empobrece um pouco. Em uma falha meio tosca para os padrões do diretor, chega-se a dar a mesma informação por narração em dois momentos diferentes.

 

Não só de referências e adrenalina é feito Jogador Nº 1. Existe um subtexto socioeconômico, cultural e político que permeia o filme e que é motivador de parte dos personagens que percebem que a fuga proporcionada pelo Oasis não é o suficiente e que a realidade dura das pessoas no mundo real precisa ser mudada. Existe uma crítica clara ao capitalismo sem freios ao mostrar um futuro distópico onde empresas podem exercer força paramilitar e condenar pessoas a prisão por dívidas, uma forma de trabalho escravo, em “clubes de fidelidade” que podem até levar à morte. Spielberg faz o que é de seu estilo e não enfia totalmente o pé na lama de temáticas políticas se o filme é voltado para o público infanto-juvenil, o que é válido. Porém, ele acaba “aguando” um pouco a conclusão que a história tem no mundo real, seja por abobalhar o vilão num momento chave (com trocadilho) em que ele deveria ser mais implacável, seja pela conclusão que parece preferir um “capitalismo legal” e não uma liberdade de um mundo virtual “sem donos”, mais condizente com a cultura ciberpunk, que é uma referência clara na revolta dos jogadores contra o poder que enfrentam. Tivesse ele sido um tantinho mais áspero e ousado na conclusão, Jogador Nº1 teria sido um filme perfeito.

 

Jogador Nº1 tem enorme possibilidade de se tornar um clássico instantâneo. Spielberg, já septuagenário, consegue fazer um gigantesco épico em homenagem ao estilo de entretenimento do qual ele próprio foi um dos principais forjadores, sem se repetir, sem nenhuma auto referência constrangedora (talvez eliminar suas próprias referências do filme tenha sido um ato mais bem pensado do que parece), mostrando ser não apenas relevante para o cinema de ação e aventura modernos como absolutamente essencial. Nós ainda precisamos dos gênios do cinema que despontaram nos anos 80, como Spielberg, Miller e Zemeckis para nos ajudar a voar com um cinema menos afetado e mais inteligente, porém sempre e descaradamente divertido. Não perca a experiência no cinema, pois é incomparável. Ainda mais porque ver um Gundam lutando com Mecha Godzilla em um filme de Steven Spielberg é o maior exemplo de pornografia nerd jamais impressa em celuloide!

 

COTAÇÃO: 


 
JOGADOR Nº1 (Ready Player One, 2018)
Com: Tye Sheridan, Olivia Cooke, Ben Mendelsohn, Lena Waithe, T.J. Miller, Simon Pegg e Mark Rylance.
Direção: Steven Spielberg
Roteiro: Zak Penn e Ernest Cline, baseado no livro de Ernest Cline
Fotografia: Janusz Kaminski
Montagem: Sarah Broshar e Michael Kahn
Música: Alan Silvestri

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