Steven Spielberg inventou o entretenimento hollywoodiano
como o conhecemos hoje. É dele aquele
que é considerado o primeiro blockbuster, Tubarão (1975), o primeiro filme a
bater a marca de 100 milhões de dólares de arrecadação. Sua contribuição vai
bem além de sua obra como diretor e antes dos 40 anos de idade já produzia
grandes sucessos, principalmente de ação e aventura de cineastas como Joe
Dante, Robert Zemeckis, Barry Levinson e Richard Donner. Suas produções deste
período se entranharam de tal forma na cultura pop que são referência até hoje,
mesmo para o público mais jovem. Não foi surpresa que quando Ernest Cline lançou
seu livro Jogador Nº 1 Spielberg tenha sido uma das principais das,
literalmente, centenas de referências à cultura pop que não apenas ilustram mas
que se integram profundamente à narrativa. Quando Spielberg iniciou a adaptação
do livro para o cinema, foi mais do que “o melhor homem para o trabalho”, mas o
fechamento de um círculo perfeito e a suprema auto referência metalinguística.
Em 2045 a economia mundial está em frangalhos e a população
empobrecida e sem perspectiva vive imersa em um mundo virtual chamado Oasis,
onde cada um pode ser e fazer o que quiser, numa das formas mais extremas e
completas de escapismo que a tecnologia do entretenimento pode oferecer. As
referências pop de Halliday, criador do jogo, que é quase que cultuado como um
deus, tornam-se também referências e obsessões dos jogadores, que inundam o
mundo virtual de ícones do cinema, animes e games, principalmente mas não
restritas aos anos 1980. Quando Halliday morre, é revelado que ele deixou três
chaves escondidas no Oasis, e quem encontrar as três se tornará o novo herdeiro
da empresa. Com isso, inicia-se uma caçada não apenas entre os jogadores, como
o protagonista Wade, mas também de uma mega empresa rival que pretende uma “aquisição
hostil”, literalmente, encontrando as chaves.
Da forma como é visto por Spielberg, Jogador Nº1 é uma
experiência verdadeiramente deslumbrante! Num ataque desnecessário de modéstia,
ele retirou todas as referências a seus próprios filmes, porém as demais são
tão numerosas e algumas são tão obscuramente “cult” que seria necessário um
exército de Capitães América para “pescar” todas (pelo menos, King Kong é do
tempo dele). Muitas dessas referências são verbalizadas, provavelmente para dar
uma ajudinha ao público mais casual, mas as que passam rapidamente pela tela
são incontáveis principalmente personagens de games. Sendo ele mesmo um “nerd
velha guarda”, Spielberg entende o material e seu público e não poupa participações
ilustres, seja de personagens, objetos ou filmes inteiros, tornando o filme uma
homenagem ao universo pop e nerd sem precedentes. Sendo não apenas fã mas amigo
pessoal de Kubrick, é indescritível o quanto ele se diverte recriando cenas de
O Iluminado (que rendeu aplausos em “cena aberta”, algo muito raro em cabines
de imprensa). O clímax do filme é o mais épico crossover já feito, com centenas
de personagens dos mais variados universos.
Estando Spielberg distante do cinema “pipoca” a tantos anos
(os últimos foram Indiana Jones em 2008 e Tin Tin em 2011), pode surpreender a
alguns como ele mantém o total domínio do filme nas espetaculares cenas de ação.
Mas isso é Spielberg sendo o mestre da narrativa que sempre foi. O filme
permanece sob seu total controle nos 140 minutos de projeção, numa narrativa
fluida, instigante, sem “barrigas” ou “furos”. O visual é espetacular, onde o
ambiente 100% em animação digital no universo virtual contrasta com a realidade
das favelas pobres e dos escritórios frios filmados em película 35mm. As cenas
de ação são impecáveis e lembram o exemplo de George Miller no recente Mad Max.
Aos 71 anos (como tinha Miller a dois anos), Spielberg dá uma aula a essa
geração que acha que cinema de ação se faz com câmera com parkinson e um corte
a cada nanossegundo e não com conhecimento e domínio da linguagem
cinematográfica e com sensibilidade artística. Ele guarda hábitos de artesão
cinematográfico ao ainda filmar e montar em película, ao mesmo tempo em que
domina totalmente as mais novas tecnologias do cinema. Spielberg admitiu ter
sido o terceiro filme mais difícil de sua carreira, atrás apenas de Tubarão e O
Resgate do Soldado Ryan.
Uma das poucas ressalvas a serem feitas é em relação aos
vilões. Spielberg escolheu trabalhar com vilões mais caricatos e ligeiramente
cômicos e, mesmo que o que eles representam seja completamente assustador
dentro da história, os personagens não são assustadores por si, e isso acaba
fazendo um pouco de falta. O elenco no geral é bom, mas os personagens não são
aprofundados, com a exceção dos dois principais e, até certo ponto, de Halliday.
Aliás, o ator Mark Rylance parece ser a mais nova paixão do diretor. De espião
russo, a gigante amigo e gênio da informática, Rylance parece ser capaz de
fazer qualquer coisa. Outra ressalva é quanto à narração do protagonista,
principalmente na primeira meia hora de filme. Com muita coisa a ser explicada,
e muita história a ser contada, muito da história pregressa vai sendo explicada
por narração para acelerar as apresentações da história e facilitar o
entendimento do público quanto à trama, o que empobrece um pouco. Em uma falha
meio tosca para os padrões do diretor, chega-se a dar a mesma informação por
narração em dois momentos diferentes.
Não só de referências e adrenalina é feito Jogador Nº 1.
Existe um subtexto socioeconômico, cultural e político que permeia o filme e que
é motivador de parte dos personagens que percebem que a fuga proporcionada pelo
Oasis não é o suficiente e que a realidade dura das pessoas no mundo real
precisa ser mudada. Existe uma crítica clara ao capitalismo sem freios ao
mostrar um futuro distópico onde empresas podem exercer força paramilitar e
condenar pessoas a prisão por dívidas, uma forma de trabalho escravo, em “clubes
de fidelidade” que podem até levar à morte. Spielberg faz o que é de seu estilo
e não enfia totalmente o pé na lama de temáticas políticas se o filme é voltado
para o público infanto-juvenil, o que é válido. Porém, ele acaba “aguando” um
pouco a conclusão que a história tem no mundo real, seja por abobalhar o vilão
num momento chave (com trocadilho) em que ele deveria ser mais implacável, seja
pela conclusão que parece preferir um “capitalismo legal” e não uma liberdade
de um mundo virtual “sem donos”, mais condizente com a cultura ciberpunk, que é
uma referência clara na revolta dos jogadores contra o poder que enfrentam.
Tivesse ele sido um tantinho mais áspero e ousado na conclusão, Jogador Nº1 teria
sido um filme perfeito.
Jogador Nº1 tem enorme possibilidade de se tornar um
clássico instantâneo. Spielberg, já septuagenário, consegue fazer um gigantesco
épico em homenagem ao estilo de entretenimento do qual ele próprio foi um dos
principais forjadores, sem se repetir, sem nenhuma auto referência
constrangedora (talvez eliminar suas próprias referências do filme tenha sido
um ato mais bem pensado do que parece), mostrando ser não apenas relevante para
o cinema de ação e aventura modernos como absolutamente essencial. Nós ainda
precisamos dos gênios do cinema que despontaram nos anos 80, como Spielberg,
Miller e Zemeckis para nos ajudar a voar com um cinema menos afetado e mais
inteligente, porém sempre e descaradamente divertido. Não perca a experiência
no cinema, pois é incomparável. Ainda mais porque ver um Gundam lutando com
Mecha Godzilla em um filme de Steven Spielberg é o maior exemplo de pornografia
nerd jamais impressa em celuloide!
COTAÇÃO:
JOGADOR Nº1
(Ready Player One, 2018)
Com: Tye
Sheridan, Olivia Cooke, Ben Mendelsohn, Lena Waithe, T.J. Miller, Simon Pegg e Mark
Rylance.
Direção: Steven Spielberg
Roteiro: Zak Penn e Ernest Cline, baseado no livro de Ernest
Cline
Fotografia: Janusz Kaminski
Montagem: Sarah Broshar e Michael Kahn
Música: Alan Silvestri
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