quarta-feira, 16 de março de 2022

Os filmes do Oscar: A FILHA PERDIDA – 3 indicações

Por Ricky Nobre

A adaptação para cinema de uma obra literária que se compõe mais de reflexões do narrador do que da narração de uma sequência de fatos é particularmente difícil. Da mesma forma que, em plena terceira década do século XXI, também é difícil a apresentação de protagonistas com algum tipo de moral duvidosa, fora de algum padrão, desviando de alguma “normalidade”, principalmente se for feminina e não houver, em algum momento do roteiro, uma punição externa por seus desvios. E mais ainda se esta personagem se desvia do sagrado e inquestionável caminho da maternidade abnegada. Em sua estreia na direção cinematográfica, a atriz Maggie Gyllenhaal definitivamente não escolheu a facilidade. 

Leda é uma professora universitária em férias na Grécia. Sua personalidade reclusa encaixa-se perfeitamente no cenário e na paz que encontra na praia próxima ao hotel. Essa paz é perturbada, porém, com a chegada de uma família extensa, espaçosa e barulhenta, com a qual Leda já inicia certa animosidade graças a sua voluntária falta de simpatia. Uma integrante dessa família, porém, captura a atenção sua atenção: Nina, uma jovem mãe na qual Leda vê um espelho que lhe traz memórias as quais não quer recordar, mas do qual não consegue tirar os olhos. Seus dias na cidade e as interações com as pessoas lhe trarão uma série de lembranças, principalmente de suas duas filhas e ela terá que lidar com segredos do passado e do presente.

 

Gyllenhaal desvenda a personagem Leda, sua história, seus segredos e caráter muito lentamente e de forma não linear. Vamos tomando conhecimento de suas atitudes e decisões de forma fragmentada, e quase pergunta alguma é respondida de imediato. Não há intenção de que Leda seja desvendada rapidamente. Ela é reclusa, irrita-se com as aproximações de quem pretende flertar ou apenas jogar conversa fora, para, em outro dia, ou momentos depois, ela própria fazer a mesma coisa. Tem memórias de profunda impaciência com as filhas e evita responder perguntas sobre elas, enquanto que, em outros momentos, fala sobre elas compulsivamente. É assombrada pela culpa de decisões passadas, ao mesmo tempo em que admite que tomá-las “foi maravilhoso”. Leda não é um mistério apenas para o público, mas também para si mesma. Por mais simples que seja para o espectador explicar os motivos do sumiço da boneca, ela mesma não faz a menor ideia do porquê ela fez o que fez. A nossa perspectiva sobre nós mesmos é única, e normalmente colide com as de quem nos observa. 

 

Gyllenhaal não teme o julgamento do público sobre a protagonista. Ao contrário, ele é convidado a observá-la bem de perto, com frequentes closes da câmera quase sempre na mão. A leveza da câmera usada (a Arri Mini), dá aos movimentos uma mobilidade semelhante a de uma câmera 16mm. Aliás, apesar do desejo da diretora em rodar o filme em película, o orçamento restrito não permitiu. A fotografia digital, porém, é extremamente bem concebida pela fotógrafa francesa Hélène Louvart, veterana que já trabalhou com Agnès Varda, Claire Denis e com o brasileiro Karim Aïnouz. A diretora constrói a estética de seu filme com muita informação do cinema europeu dos anos 50 e 60. O enquadramento é no formato 1,66:1, que foi comum na Europa até a década de 80. A inesperada música de Dickon Hinchliffe segue caminho semelhante a partir da concepção da diretora, que explicou ao compositor que queria que a trilha soasse como um “disco encontrado”, um velho LP com dos anos 50 ou 60 que, magicamente, se encaixaria perfeitamente no filme. A trilha de Hinchliffe, gravada com equipamentos e técnicas analógicas, mescla-se com as canções originais da artista grega Monike, formando uma tapeçaria sonora que adorna essa estética vintage de Gyllenhaal.

A diretora constrói sutilmente um clima de suspense (como quando a boneca parece ter sumido do armário, ou o medo que Leda tem do marido de Nina), sem que, em momento algum, o filme pareça pertencer a esse gênero. Esse suspense acompanha a inquietação do espectador em tentar descobrir, principalmente através dos flashbacks (muito bem costurados pela montagem do brasileiro Affonso Gonçalves), uma chave, um código capaz de desvendar Leda. Esse código vem aos pedaços, não é preciso nem matemático. Leda não é perfeitamente coerente, porque ninguém o é. Se Leda nos escandaliza em alguns momentos, talvez não reagíssemos assim se fosse um homem protagonista. Sua personagem não é exatamente “desculpada”, ou “justificada” pela narrativa e pelo roteiro. Ela apenas É. Ela sente, reage e vive como consegue frente aos desafios da vida e às imensas expectativas que se impõe a ela, que são as que se impõem a qualquer mulher. 

 

A interpretação sublime de Olivia Colman, com o perfeito complemento de Jessie Buckley que vive a Leda jovem, é onde tudo isso se converge e solidifica. As emoções, a culpa, a dúvida, a vergonha, o desejo de viver, a desilusão, tudo ganha vida no trabalho excepcional das atrizes. Sob aparente simplicidade, A Filha Perdida é um filme intensamente emocional, ainda que de uma emoção sufocada. O público reage com sentimentos que vão da revolta à profunda identificação, e essa disparidade é esperada, pois depende de como cada uma idealiza e vive a maternidade. Quando se idealiza a maternidade, ou seja, quando se idealiza uma mãe, idealiza-se também o filho. A filha perdida é aquela que desapareceu junto com a ilusão de uma maternidade ideal, “assassinada” pela filha de verdade. Leda tenta, desesperadamente, reavê-la no futuro. Mas não é possível sequestrar um sonho perdido.

 COTAÇÃO:

 

INDICAÇÕES AO OSCAR:

Atriz: Olivia Colman

Atriz coadjuvante: Jessie Buckley

Roteiro adaptado: Maggie Gyllenhaal, baseado no livro de Elena Ferrante.

 

A FILHA PERDIDA (The Lost Daughter, EUA / Reino Unido / Israel / Grécia – 2021)

Com: Olivia Colman, Jessie Buckley, Dakota Johnson, Ed Harris, Peter Sarsgaard, Paul Mescal e Dagmara Dominczyk.

Direção e roteiro: Maggie Gyllenhaal

Fotografia: Hélène Louvart

Montagem: Affonso Gonçalves

Música: Dickon Hinchliffe

Canções originais: Monika

Design de produção: Inbal Weinberg       

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