domingo, 13 de janeiro de 2019

VIDRO - A preciosa e frágil conclusão de uma trilogia inesperada.


Por Ricky Nobre


A carreira de M. Night Shyamalan tem um “que” de bizarra. O Sexto Sentido (1999), seu terceiro filme que todos pensam que foi o primeiro, foi um estrondoso sucesso e uma unanimidade de público e crítica que o tornou a grande sensação de Hollywood na virada do milênio. Daí por diante, seguiu um fase de sucessos que já não eram tão unânimes mas que consolidaram seu prestígio, principalmente sua marca registrada da “virada final inesperada”. De fato, é difícil encontrar em sua trajetória obras que, ainda de alta qualidade, tão exatas e perfeitas como Sexto Sentido e Corpo Fechado (2000), sendo este talvez seu mais magistral trabalho de direção. Suas obras posteriores tinham o perfil de obras primas falhas, como o sensacional suspense de Sinais (2002) que esbarra de falhas lógicas elementares do roteiro, ou a temática social absolutamente genial de A Vila (2004), mas que possui cenas supostamente aterrorizantes que não assustam nem o Cão Coragem. 

 

Controverso, permaneceu provocando fascínio em público e crítica até o inacreditavelmente ruim Fim dos Tempos (2008), um absoluto fracasso artístico e comercial. Daí foi ladeira abaixo, com O Último Mestre do Ar (2010), adaptação da famosa animação Avatar, que é até bastante decente na primeira metade (para quem não conhece a série), mas que se torna um desastre da metade em diante, e também Depois da Terra (2013), talvez não tão ruim quanto sua fama, mas absolutamente medíocre. Chegou um ponto em que se tornou um mistério como os estúdios ainda apostavam em seus projetos em frente à sequência de fracassos. Mas foi o próprio Shyamalan que desistiu de Hollywood primeiro, dizendo-se farto da interferência dos produtores em seu últimos trabalhos. Com um baixíssimo orçamento, voltou ao sucesso de público com um suspense estilo found footage com A Visita (2015), que custou 5 milhões de dólares e rendeu 98 milhões. Em seguida, Shyamalan se voltou a um projeto que era muito mais a sua cara. Fragmentado (2016) trazia um deslumbrante James McAvoy como um psicopata de múltiplas personalidades e o desespero de três meninas tentando fugir de seu cativeiro, enquanto conhecemos detalhes de sua história e dos indivíduos dentro dele em seus encontros com sua psiquiatra. Custou meros 9 milhões a arrecadou 278 milhões. Aos olhos de todos, Shyamalan estava de volta.


Rapidamente, Shyamalan tratou de anunciar seu filme seguinte. Seguindo a última cena do filme, em que descobrimos que tudo ocorre no mesmo universo do filme Corpo Fechado, ele releva que faria um crossover entre os filmes, no capítulo final de uma trilogia que, de fato, ninguém sabia que existia. Seu prestígio estava renovado a tal ponto que ele conseguiu rigorosamente sem esforço algum convencer a Disney e a Universal, cada uma detentora dos direitos de um filme, a juntarem as forças numa parceria inédita. Vidro chega carregado de expectativa, uma vez que seria o encontro de dois de seus melhores filmes. Como é de seu estilo, Shyamalan subverte expectativas logo de início, ao apressar o encontro entre o herói Dunn (Bruce Willis) e o vilão Kevin (McAvoy), para logo em seguida trancafiá-los numa instituição psiquiátrica sob os cuidados da Dra. Staple (Sarah Paulson), que acredita que eles sofram, junto com Elijah (Samuel L. Jackson), preso ali há 19 anos, de uma condição psiquiátrica que os fazem acreditar ter superpoderes. 

 

Vidro segue, a exemplo de Corpo Fechado, dissertando sobre os rudimentos das HQs de heróis, obsessão de Ellijah, que pretende se aproveitar da força bruta da Besta presente em Kevin para confrontar Dunn. Diversos aspectos do texto de Shyamalan são fascinantes, como a forma com que cada um dos três aprisionados tem um familiar que tenta agir em favor deles. Além dos óbvios (a mãe de Elijah e o filho de Dunn), a grande surpresa é Casey, a sobrevivente em Fragmentado que nutre imensa simpatia por Kevin, não apenas por ter sido poupada, mas pelo motivo dessa decisão de Kevin: são ambos vítimas da dor, sofrimento e abuso. A forma como os dois interagem ao longo do filme mostra grande sensibilidade de Shyamalan e é um de seus pontos altos. 

 

Igualmente instigantes são os esforços da Dra. Staple em convencer os três personagens de que seus superpoderes são uma ilusão, uma junção de pequenas coincidências com os traumas que sofreram em determinados momentos de suas vidas. Aqui, ele sugere um embate entre fé e ceticismo, mas também entre a arte dos quadrinhos e a sisudez engessada de quem a considera uma arte menor. A dúvida sobre seus argumentos, porém, é plantada com sucesso não só nos personagens mas também no público, e cabe justamente aos entes queridos (mãe, filho e vítima) manter viva a fé nos seus. 

 

Shyamalan, próximo ao fim, sente-se novamente à vontade em construir suas viradas de trama, e aqui pode-se até considerar uma certa “overdose”, com a virada da virada da virada. Essas revelações da trama, embora de qualidade, podem trazer um sabor insosso ao deixar o público órfão de um clímax prometido mas não concretizado. Mas isso é Shyamalan subvertendo expectativas, e para tirar o melhor da experiência é preciso embarcar no seu estilo. Numa das surpresas finais, porém, um determinado fato se mostra excessivamente bruto e frio, e provavelmente é a pior coisa do filme, principalmente em comparação com a forma com que outros personagens são tratados. Ao fim, percebemos que o filme não se chama Vidro a toa: é de fato o filme do Mr. Glass, assim como o primeiro foi de Dunn e o segundo de Kevin. O preço, porém, é alto. Relações e sentimentos preciosos entre os personagens são forjados e redenções são alcançadas e tudo parece ir por terra de forma violenta e impiedosa, para, no momento final, tudo mostrar-se como necessário para um objetivo mais elevado. Pode ser belo para alguns e descer quadrado para outros.

 

Vidro está sendo injustamente massacrado pela crítica internacional. Ainda que tenha alguns problemas, ele consolida um Shyamalan novamente à vontade com seu cinema que, reiterando, nunca foi de fato uma unanimidade após Sexto Sentido. Apesar de alguns momentos brilhantes, em sua totalidade ele fica abaixo dos dois anteriores, mas não de forma vergonhosa, pelo contrário. É possível que parte do público realmente deteste os rumos que Shyamalan escolheu para a história, e isso é bem compreensível. Mas está longe da fase nefasta iniciada com Fim dos Tempos. Esperamos que Shyamalan tenha voltado de fato, e pra ficar.

 

COTAÇÃO: 

VIDRO (Glass, 2019)

Com: Bruce Willis, Samuel L. Jackson, James McAvoy, Sarah Paulson, Anya Taylor-Joy, Spencer Treat Clark e Charlayne Woodard.

Roteiro e direção: M. Night Shyamalan  

Fotografia: Mike Gioulakis

Montagem: Luke Ciarrocchi e Blu Murray

Música: West Dylan Thordson

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