Por Ricky Nobre
Pouca gente sabe, lembra ou se importa, mas foi um herói
negro que mudou tudo. Em 1998, estreou nos cinemas, com inesperado sucesso, o
filme Blade, o herói caçador de vampiros do universo dos quadrinhos da Marvel, interpretado
por Wesley Snipes. Foi o sucesso de Blade que influenciou de forma decisiva a
aprovação do projeto do filme X-Men pela Fox, lançado no ano 2000. A partir
daí, foram diversos sucessos e fracassos que se sucederam com vários estúdios
criando filmes de super-heróis, até que a própria Marvel tornou-se um estúdio em
2008 e iniciou seu grande universo integrado. Alguns anos depois, a DC/Warner
iniciou um projeto igualmente ambicioso. Depois de tantos anos, outros super-heróis
negros apareceram, mas apenas como coadjuvantes em filmes de outros. Até agora.
O filme se inicia logo após os eventos de Capitão América:
Guerra Civil, onde o rei do país africano Wakanda é morto na ONU diante do
filho, o príncipe T'Challa (Chadwick Boseman). Herdeiro do trono e do manto do
Pantera Negra, T'Challa guarda também um grande segredo diante do mundo:
Wakanda, que aos olhos de todos é um país pobre que sobrevive de uma pequena
produção agrícola, é na verdade uma cultura extremamente avançada
tecnologicamente, décadas a frente do resto do mundo, e com um enorme manancial
de um metal raro e poderoso: vibranium. T’Challa parte para a captura de um velho
inimigo, Klaue (Andy Serkis, sempre excelente), conhecedor do segredo de
Wakanda e contrabandista de vibranium e de tecnologia relacionada. Porém, muito
mais perigoso, é o jovem Killmonger (Michael B. Jordan) que o acompanha.
Killmonger trará morte, discórdia e um questionamento muito desconfortável
sobre como Wakanda, ao se ocultar do mundo e proteger seus tesouros e legado da
devastação dos colonizadores europeus, acabou por virar as costas aos negros
espalhados pelo mundo.
Assistir Pantera Negra não é uma tarefa fácil, no melhor dos
sentidos. Desde o início de sua produção, sabia-se que esse seria o primeiro
filme de super-heróis com elenco majoritariamente negro (na verdade, tem apenas
dois personagens brancos importantes e um punhado de figurantes). Mas é só quando
você realmente vê os deslumbrantes cenários de Wakanda, sejam urbanos ou naturais,
naquela belíssima fantasia de uma nação africana que não foi destruída em sua
cultura, orgulho e recursos naturais, numerosos personagens femininos (MUITAS guerreiras!) em pé de
igualdade com os masculinos, um blockbuster milionário sobre um povo e cultura
africanos... Quando você finalmente vê é que bate a realidade do quanto aquilo
é inédito; que já estamos no ano de 2018 e é a primeira vez que algo desse
calibre foi realizado. E se a emoção já invade completamente o crítico branco, é incalculável
o impacto que terá em jovens negros e negras.
Mas nada disso teria significado num filme vazio. E Pantera
Negra tem um excelente roteiro do diretor Ryan Coogler e de Joe Robert Cole.
Coogler disse que o tom do filme é uma mistura de O Poderoso Chefão com James
Bond. E é bem por aí. Enquanto o Pantera Negra enfrenta os inimigos com muita
habilidade e alta tecnologia, o filme mostra um drama familiar entre a nobreza
do pais em escala épica, com segredos e revelações inesperadas. Mas vai bem
além. O embate entre T’Challa e Killmonger é físico, ético, filosófico e moral.
Indo além do Abrutre no recente Homem Aranha, um vilão com excelente motivo pra
fazer o que fazia, Killmonger tem toda uma nação espalhada pelo mundo que ele
pretende vingar e proteger, algo como Magneto, que vê a humanidade como inimiga
dos mutantes em X-Men. Dilemas totalmente contemporâneos, como abertura de
fronteiras, acolhimento de refugiados, interferência e/ou ajuda internacional,
tudo isso é posto em perspectiva quando é discutida dentro de uma realidade
de fantasia, ainda que semelhante à nossa. Até em sua última frase no filme,
Killmonger põe questões em perspectiva e deixa muito clara a sua posição.
Tecnicamente, o filme é maravilhoso. Apesar de algumas
pequenas escorregadas no CGI (Hollywood insiste nos dublês digitais, mas eles
sempre ficam meio esquisitos), Pantera Negra é disparado o filme mais bonito da
Marvel. A luz e as cores na fotografia de Rachel Morrison (a primeira mulher na
direção de fotografia em um filme da Marvel), a direção de arte, os figurinos...
o filme é tão bonito de se ver que parece da DC (sorry guys!). A música de Ludwig Göransson integra
grandes sons sinfônicos com sons africanos, resultado de uma viagem de dois
meses que o compositor fez pelo Senegal e África do Sul pesquisando músicos,
instrumentos e sons locais. Ponto para o
diretor Coogler que insistiu em levar sua equipe que sempre trabalhou com ele,
em vez de aceitar a imposta pela Marvel. Se existe um “filme de autor”, uma obra pessoal na
Marvel, é Pantera Negra. Ao mesmo tempo em que ele se integra perfeitamente,
sem falha alguma, ao universo Marvel que já soma 18 filmes, ele traz para a
mesa muitas coisas que jamais foram vistas nos filmes da MCU. E pode parecer uma bobagem, mas é um enorme alívio ver um filme de super-herói que usa máscara onde ele não fica tirando a máscara toda hora, no meio de uma luta, só porque o ator quer mostrar a cara tempo inteiro! O Pantera Negra só tira a máscara quando termina o serviço!
Se o filme tem um problema, este é a escolha de Michael B.
Jordan como Killmonger. Ator de trabalhos anteriores de Ryan Coogler, especialmente
Creed, onde se saiu bem, aqui Jordan não consegue dar a intensidade necessária
que seu personagem exigia, com o agravante de que todos os demais excelentes
integrantes do elenco conseguiram fazer muito bem. Seu rosto parece sempre ter
a mesma expressão e a voz o mesmo tom e, infelizmente, Killmonger permanece um
personagem muito melhor escrito do que foi interpretado. Numa análise mais
fria, ele não está exatamente ruim, mas muito abaixo de todos os outros que se
saíram especialmente bem. Se o excelente Sterling K. Brown, ator premiado da
série This Is Us, que faz uma pequena participação, tivesse pegado o papel de
Killmonger, o resultado com certeza seria bem melhor.
Pantera Negra é o extremo oposto do filme anterior do
estúdio, Thor: Ragnarok. Ao contrário deste, é um filme inteligente, profundamente
emocionante, lindo, dramático, divertido, com humor muito bem dosado. É o
anti-ragnarok em todos os sentidos. É o melhor filme da Marvel até agora, e um
dos melhores filmes de super-heróis já feitos, ao lado de Superman (1978),
X-Men 2 (2003), O Cavaleiro das Trevas (2008) e Logan (2016). Os demais filmes
da Marvel até o fim da fase 3 já estão quase prontos ou em produção, ou seja, o
tom e o caminho deles já está definido. Mas, assim que terminar Vingadores 4 em
2019, a Marvel terá uma difícil decisão. Ragnarok teve uma bilheteria
excepcional no mundo todo e, apesar de ainda não ter estreado, Pantera Negra já
dá certeza de altíssima bilheteria, uma vez que já é campeão de pré venda de
ingressos. Com dois grandes sucessos tão radicalmente diferentes um do outro, a
Marvel deverá decidir se seguirá o caminho Thor ou Pantera Negra. Waititi ou
Coogler. Imaturidade ou inteligência. Só nos resta ter fé.
COTAÇÃO:
PANTERA NEGRA (Black Panther, 2018)
Com: Chadwick
Boseman, Michael B. Jordan, Lupita Nyong'o, Danai Gurira, Martin Freeman, Daniel
Kaluuya, Letitia Wright, Winston Duke, Sterling K. Brown, Angela Bassett, Forest
Whitaker e Andy Serkis.
Direção: Ryan
Coogler
Roteiro: Ryan Coogler e Joe Robert Cole
Fotografia: Rachel Morrison
Montagem: Debbie Berman e Michael P. Shawver
Música: Ludwig Göransson
Canções originais: Kendrick Lamar
Nenhum comentário:
Postar um comentário