Por Ricky Nobre
Guillermo del Toro criou dois mundos bem separados para sua
carreira: o mundo hollywoodiano dos blockbusters, com filmes como Blade 2, O
Círculo de Fogo e Hellboy, e seu mundo pessoal de filmes de autor, em A Espinha
do Diabo e O Labirinto do Fauno. E é justamente de mundos separados que, em
alguma forma e medida, se espelham e se tocam que é constituída essa sua
filmografia mais autoral. E se Truffaut e os garotos da Cahiers estavam certos
em sua “teoria do autor” lá na década de 1950, como autor del Toro está fadado
a, enxergando bem no âmago destas obras, fazer sempre o mesmo filme.
À semelhança de Labirinto do Fauno, del Toro tem novamente
uma heroína. E se desta vez é uma adulta em vez de uma menina, a inocência,
bondade e coragem da personagem se mantém. Elisa (Sally Hawkins) é uma mulher
muda, solitária, tímida e sonhadora que trabalha como faxineira num centro de
pesquisas do governo. Suas únicas companhias são a colega de trabalho Zelda (Octavia
Spencer) e o ilustrador Giles (Richard Jenkins) com quem divide um pequeno
apartamento. Quando um misterioso ser anfíbio é capturado pelos militares e
levado ao laboratório, Elisa fica fascinada com sua presença, apesar de todo o
perigo que é atribuído a ele. Entre a curiosidade dos cientistas, a crueldade
do chefe de segurança Strickland (Michael Shannon), o pragmatismo dos militares
e até espiões russos, o destino incerto da criatura pode estar nas mãos da doce
faxineira.
A água na qual o mais novo filme de del Toro está mergulhado
é formada quase inteiramente de inocência, solidão e nostalgia. Elisa é uma
personagem impecavelmente construída, magistralmente interpretada por Hawkins.
Logo na primeira sequência, sua rotina matinal, incluindo todos os maneirismos
da personagem ao executá-la, dá à Elisa uma irresistível fofura, que persiste
aos olhos do público até mesmo quando ela fica completamente nua e masturba-se
na banheira como parte desta rotina diária. Tudo o que Elisa faz é fofo, doce e
com uma constante aura de inocência, até em sua sexualidade, o que é uma
impressionante façanha de se realizar sem entediar o público antes da metade do
filme.
Em geral, todo o elenco do filme é impecável e carrega seus
personagens nas costas quando eles não passam de acessórios à trama, como é o
caso da Zelda de Spencer e do Strickland de Shannon. Este, aliás, dá força a
seu vilão quase que apenas por méritos próprios, ao interpretar o verdadeiro
monstro do filme. Seu chefe de segurança, porém, perde muito em dimensão e em
capacidade de aterrorizar se comparado ao Capitão Vidal de Labirinto do Fauno.
Mas Shannon faz o melhor que pode e mais um pouco. Doug Jones, como sempre faz
em papéis como o Abe de Hellboy, o Fauno de Labirinto do Fauno e o Surfista
Prateado de Quarteto Fantástico, dá um show de interpretação debaixo de grossas
camadas de maquiagem, sendo referência absoluta neste tipo de trabalho.
Aliados ou inimigos, todos os personagens compartilham uma
característica em comum: embora estejam interligados e suas vidas e destinos se
cruzem, a solidão faz parte da vida de todos. Não apenas Elisa e a criatura,
mas Giles, sendo um velho homossexual na década de 60; Strickland que,
carregando uma raiva e insatisfação constantes, praticamente não se relaciona
com sua família perfeita de comercial de margarina; Zelda, cujo marido a ignora;
e o cientista Hoffstetler, cujas decisões o isola de seus aliados. Essa solidão
dá uma melancolia à história que é bastante suavizada por toda inocência e
clima de conto de fadas impresso por del Toro.
Tal clima também se vale da nostalgia evocada não apenas
pela ambientação dos anos 60, mas também pelas próprias referências de Elisa,
mergulhada em nostalgia em seu tempo, uma vez que todos os filmes que vê e as
músicas que ouve são dos anos 30 e 40. A fotografia belíssima do dinamarquês Dan
Laustsen, com uma paleta firmada principalmente no verde, constrói uma
atmosfera idílica, avessa à frieza da guerra silenciosa entre EUA e URSS e dos
homens que a travam. A música do francês Alexandre Desplat (compositor de maior
ascensão em Hollywood na última década) é estruturada de forma bem “old school”,
com dois temas proeminentes, usados de forma consistente como leitmotiv: o
principal, ouvido como um assovio do próprio Desplat, e um tema para Elisa,
executado por diversos instrumentos mas, principalmente, por acordeom. Essa “francesice”
de Desplat, mais a fotografia de Laustsen, mais a heroína doce e solitária que
gosta das pessoas, acabam dando um clima meio Amelie Poulain, que pode não cair
bem para o gosto de alguns. De fato, o mexicano del Toro fez nos EUA um filme
europeu. Sendo honesto, é o tipo de coisa que a Academia adora, e não será
surpresa se ele arrebatar diversas das 13 estatuetas a que está concorrendo.
Apesar de A Forma da Água ser o mais comercial dos filmes
de arte de del Toro, não há porque imaginar que ele foi realizado com olho em
bilheterias ou em Oscar. Em seu agradecimento pelo Globo de Ouro, ele agradeceu
emocionado aos monstros que “salvaram sua vida três vezes”, em referências às
criaturas fantásticas de A Espinha do Diabo, Labirinto do Fauno e agora A Forma
da Água. Ele realizou um filme verdadeiramente adorável, surpreendente na
ousadia com que, sem medo do ridículo, leva o relacionamento entre Elisa e a
criatura a um nível inesperado. Se Zelda e, principalmente, Strickland fossem personagens
mais profundos e estruturados, como Elisa e Giles, seria um filme bem mais
perto da perfeição. Ainda que, sob olhos mais severos, não passe de uma salada
que mistura A Bela e a Fera, O Monstro da Lagoa Negra, Amelie Poulain e o
próprio Labirinto do Fauno.
COTAÇÃO:
A FORMA DA
ÁGUA (The Shape of Water, 2017)
INDICAÇÕES AO OSCAR:
Melhor filme
Diretor: Guillermo
del Toro
Atriz: Sally Hawkins
Ator coadjuvante: Richard Jenkins
Atriz coadjuvante: Octavia Spencer
Roteiro original: Guillermo del Toro e Vanessa Taylor
Música original: Alexandre Desplat
Montagem: Sidney Wolinsky
Fotografia: Dan Laustsen
Figurino: Luís Sequeira
Edição de som: Nathan Robitaille e Nelson Ferreira
Mixagem de
som: Christian Cooke, Brad Zoern e Glen Gauthier
Direção de arte: Paul Denham Austerberry, Shane Vieau e Jeff
Melvin
Um comentário:
Esta historia é muito interessante, eu gosto muito deste tipo de roteiro, te mantém no suspense até o final. Michael Shannon fez um ótimo trabalho no filme. Eu vi que seu próximo projeto, Fahrenheit 451 será lançado em breve. Acho que será ótimo! Adoro ler livros, cada um é diferente na narrativa e nos personagens, é bom que cada vez mais diretores e atores se aventurem a realizar filmes baseados em livros. Acho que Fahrenheit 451 sera excelente! Se tornou em uma das minhas histórias preferidas desde que li o livro, quando soube que seria adaptado a um filme, fiquei na dúvida se eu a desfrutaria tanto como na versão impressa. Acabo de ver o trailer da adaptação do livro, na verdade parece muito boa, li o livro faz um tempo, mas acho que terei que ler novamente, para não perder nenhum detalhe. Sera um dos melhores filmes de ficção cientifica acho que é uma boa idéia fazer este tipo de adaptações cinematográficas.
Postar um comentário