Por Ricky Nobre
Cinebiografias sempre foram polêmicas. Existe uma tradição
de “liberdade artística” que permite um distanciamento dos roteiros dos fatos
verídicos acontecidos com os biografados que podem até atingir níveis risíveis.
Reza a lenda que a maior diversão do compositor Cole Porter na velhice era
assistir a sua biografia A Canção
Inesquecível, onde Cary Grant o interpretava, numa história que não
continha um único fato compatível com sua história de vida. E existe, igualmente, a tradição do público em
acreditar nas cinebiografias, ainda que a experiência sugira que isso não é
muito esperto.
Steve Jobs é o
terceiro filme lançado sobre o homem que criou a Apple e mudou a relação das
pessoas com a informática. Depois da interessantíssima produção para a TV Piratas da Informática (que também
retratava Bill Gates) e o recente Jobs,
estrelado por Ashton Kutcher e muito mal recebido, o diretor Danny Boyle (Trainspotting, A Praia) assume um projeto do roteirista Aaron Sorkin, que também
escreveu A Rede Social (sobre a
criação do Facebook) e o clássico Questão
de Honra, além de ser criador das muito bem sucedidas séries The West Wing e The Newsroom. Por mais personalidade que o cinema de Boyle tenha,
ele acabou ofuscado pelas polêmicas escolhas do roteiro de Sorkin.
O filme pretende resumir 14 anos da trajetória de Jobs se
concentrando nos momentos anteriores a três grandes lançamentos: o McKintosh em
1984, o NeXT em 1989 e o iMac em 1998. Supostamente baseado na biografia
escrita por Walter Isaacson, que a Sony comprou por três milhões de dólares antes
de desistir e vender o projeto para a Universal, tanto defensores quanto
críticos do filme concordam em um ponto: o filme Steve Jobs é uma obra de ficção. Ao construir o roteiro em torno
dessa ideia de contê-lo em três momentos breves e específicos, muitos eventos
que aconteceram em outras ocasiões tiveram que ser adaptados para aquelas circunstâncias
e outros tantos jamais ocorreram de modo algum, como por exemplo, o defeito de
som na apresentação do McKintosh, que jamais aconteceu, mas foi criada para
exemplificar como Jobs reagiria se a situação ocorresse.
Desta forma, o filme se assemelha mais às biografias de
antigas figuras históricas de séculos atrás, onde se cria histórias em torno de
fatos históricos básicos, pois qualquer detalhe é impossível de comprovar. Ou
ainda, possui toda a semelhança de uma biografia teatral, onde os limites físicos
do palco determinam severas adaptações, ainda que seja possível ser fiel aos
fatos principais e aos personagens reais. De fato, seria extremamente fácil
adaptar o roteiro a uma peça teatral, pois possui a mesma estrutura.
Mas se os fatos reais foram adaptados, o quanto que o filme
carrega em sua essência a realidade da pessoa e da obra de Steve Jobs? Isso continua
dependendo que quem vê. Dentre as pessoas que conheceram e conviveram com Jobs
ao longo dos anos, as opiniões variam entre os dois extremos. O fato é que
praticamente não há qualidade redentora no Jobs retratado no filme. Egocêntrico
à beira da psicopatia, péssimo pai, patrão irascível, teimosia beirando o
irracional. Diz-se que não apenas as piores características de Jobs foram
pinçadas e ampliadas, mas também a pior fase. A fase pós- iMac poderia ter
mostrado justamente um homem muito mais centrado, consciente de seus erros e
com mais empatia com demais seres humanos. Isso é sugerido, de alguma forma, na
conclusão da relação dele com a filha.
Aliás, é justamente a relação dele com a filha Lisa que pode
ter sido o aspecto que norteou o roteiro de Sorkin. Lisa jamais quis falar sobre
o pai enquanto ele estava vivo, portanto sua visão está ausente do livro de Isaacson.
Mas ela concedeu entrevista a Sorkin, e essa conturbada relação acaba sendo um
dos principais fios condutores do filme, ainda que a interação entre eles seja
quase exclusivamente ficcional.
Sendo o filme tão distante da realidade e sua fidelidade ao “espírito”
dos fatos e das pessoas retratadas forte objeto de debate, talvez seja melhor
encarar a obra como realmente uma ficção, ainda que mencione pessoas e fatos
reais. Quem não conhecer nada da vida e Jobs ou aceitar a adaptação
extremamente “inventiva”, encontrará um filme muito bem planejado, com
excelentes interpretações, direção segura e bela concepção visual. Em mais um
exemplo em como os cineastas estão criativos na escolha do suporte de captação
dos filmes, a primeira parte foi rodada em 16mm, a segunda em 35mm e a terceira
em digital, dando uma textura diferente a cada época. Talvez o principal
problema da visão quase exclusiva de um Jobs, com o perdão da palavra, escroto,
seja que, mesmo se formos encará-lo como um personagem ficcional, ele perde um
pouco a tridimensionalidade e sua relação com os demais personagens se torna
fragilizada. O filme em momento algum parece tentar explicar como pessoas tão
legais insistem em serem amigos de alguém que não parece merecer em momento
algum o carinho de ninguém. Mais ainda, o filme dá a impressão não de que a
Apple deu certo por causa de Steve Jobs, mas apesar dele.
De qualquer forma, as indicações para Fassbender e Winslet são
merecidas. Apesar de não ter semelhança alguma com Jobs, Fassbender cria uma
postura corporal e um tom de voz perfeitamente consistentes com a visão que
temos do criador da Apple. Esta não será a última cinebiografia de Steve Jobs,
nem a última cinebiografia que ficcionaliza fatos reais à exaustão. Muito menos
a última que você verá achando que é verdade.
INDICAÇÕES AO OSCAR:
Ator: Michael Fassbender
Atriz coadjuvante: Kate Winslet
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