terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Os filmes do Oscar: STEVE JOBS (duas indicações)


Por Ricky Nobre



Cinebiografias sempre foram polêmicas. Existe uma tradição de “liberdade artística” que permite um distanciamento dos roteiros dos fatos verídicos acontecidos com os biografados que podem até atingir níveis risíveis. Reza a lenda que a maior diversão do compositor Cole Porter na velhice era assistir a sua biografia A Canção Inesquecível, onde Cary Grant o interpretava, numa história que não continha um único fato compatível com sua história de vida.  E existe, igualmente, a tradição do público em acreditar nas cinebiografias, ainda que a experiência sugira que isso não é muito esperto.


 Steve Jobs é o terceiro filme lançado sobre o homem que criou a Apple e mudou a relação das pessoas com a informática. Depois da interessantíssima produção para a TV Piratas da Informática (que também retratava Bill Gates) e o recente Jobs, estrelado por Ashton Kutcher e muito mal recebido, o diretor Danny Boyle (Trainspotting, A Praia) assume um projeto do roteirista Aaron Sorkin, que também escreveu A Rede Social (sobre a criação do Facebook) e o clássico Questão de Honra, além de ser criador das muito bem sucedidas séries The West Wing e The Newsroom. Por mais personalidade que o cinema de Boyle tenha, ele acabou ofuscado pelas polêmicas escolhas do roteiro de Sorkin. 


O filme pretende resumir 14 anos da trajetória de Jobs se concentrando nos momentos anteriores a três grandes lançamentos: o McKintosh em 1984, o NeXT em 1989 e o iMac em 1998. Supostamente baseado na biografia escrita por Walter Isaacson, que a Sony comprou por três milhões de dólares antes de desistir e vender o projeto para a Universal, tanto defensores quanto críticos do filme concordam em um ponto: o filme Steve Jobs é uma obra de ficção. Ao construir o roteiro em torno dessa ideia de contê-lo em três momentos breves e específicos, muitos eventos que aconteceram em outras ocasiões tiveram que ser adaptados para aquelas circunstâncias e outros tantos jamais ocorreram de modo algum, como por exemplo, o defeito de som na apresentação do McKintosh, que jamais aconteceu, mas foi criada para exemplificar como Jobs reagiria se a situação ocorresse. 


Desta forma, o filme se assemelha mais às biografias de antigas figuras históricas de séculos atrás, onde se cria histórias em torno de fatos históricos básicos, pois qualquer detalhe é impossível de comprovar. Ou ainda, possui toda a semelhança de uma biografia teatral, onde os limites físicos do palco determinam severas adaptações, ainda que seja possível ser fiel aos fatos principais e aos personagens reais. De fato, seria extremamente fácil adaptar o roteiro a uma peça teatral, pois possui a mesma estrutura.


Mas se os fatos reais foram adaptados, o quanto que o filme carrega em sua essência a realidade da pessoa e da obra de Steve Jobs? Isso continua dependendo que quem vê. Dentre as pessoas que conheceram e conviveram com Jobs ao longo dos anos, as opiniões variam entre os dois extremos. O fato é que praticamente não há qualidade redentora no Jobs retratado no filme. Egocêntrico à beira da psicopatia, péssimo pai, patrão irascível, teimosia beirando o irracional. Diz-se que não apenas as piores características de Jobs foram pinçadas e ampliadas, mas também a pior fase. A fase pós- iMac poderia ter mostrado justamente um homem muito mais centrado, consciente de seus erros e com mais empatia com demais seres humanos. Isso é sugerido, de alguma forma, na conclusão da relação dele com a filha. 


Aliás, é justamente a relação dele com a filha Lisa que pode ter sido o aspecto que norteou o roteiro de Sorkin. Lisa jamais quis falar sobre o pai enquanto ele estava vivo, portanto sua visão está ausente do livro de Isaacson. Mas ela concedeu entrevista a Sorkin, e essa conturbada relação acaba sendo um dos principais fios condutores do filme, ainda que a interação entre eles seja quase exclusivamente ficcional. 


Sendo o filme tão distante da realidade e sua fidelidade ao “espírito” dos fatos e das pessoas retratadas forte objeto de debate, talvez seja melhor encarar a obra como realmente uma ficção, ainda que mencione pessoas e fatos reais. Quem não conhecer nada da vida e Jobs ou aceitar a adaptação extremamente “inventiva”, encontrará um filme muito bem planejado, com excelentes interpretações, direção segura e bela concepção visual. Em mais um exemplo em como os cineastas estão criativos na escolha do suporte de captação dos filmes, a primeira parte foi rodada em 16mm, a segunda em 35mm e a terceira em digital, dando uma textura diferente a cada época. Talvez o principal problema da visão quase exclusiva de um Jobs, com o perdão da palavra, escroto, seja que, mesmo se formos encará-lo como um personagem ficcional, ele perde um pouco a tridimensionalidade e sua relação com os demais personagens se torna fragilizada. O filme em momento algum parece tentar explicar como pessoas tão legais insistem em serem amigos de alguém que não parece merecer em momento algum o carinho de ninguém. Mais ainda, o filme dá a impressão não de que a Apple deu certo por causa de Steve Jobs, mas apesar dele. 


De qualquer forma, as indicações para Fassbender e Winslet são merecidas. Apesar de não ter semelhança alguma com Jobs, Fassbender cria uma postura corporal e um tom de voz perfeitamente consistentes com a visão que temos do criador da Apple. Esta não será a última cinebiografia de Steve Jobs, nem a última cinebiografia que ficcionaliza fatos reais à exaustão. Muito menos a última que você verá achando que é verdade. 

INDICAÇÕES AO OSCAR:
Ator: Michael Fassbender
Atriz coadjuvante: Kate Winslet

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